Entre os anos 1940 e 1950, o médico e geógrafo pernambucano Josué de Castro publicou obras que transformaram o entendimento mundial sobre o conceito de fome. Em livros como Geografia da Fome(1946) e Geopolítica da Fome(1951), ele demonstrou que a escassez de alimentos não era resultado da falta de produção, mas de causas sociais e políticas. Por isso, defendia que a solução passava por ações estruturais do Estado, com políticas públicas de enfrentamento.
“Josué de Castro promoveu um processo de desnaturalização da fome. Até então, ela era vista como resultado de guerras ou da própria natureza. Ele mostrou que a fome é subproduto da desigualdade e da luta dos homens contra os próprios homens”, explica o professor Helder Remígio, historiador da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pesquisador da obra do pernambucano.
“Na época, falar de fome era quase crime contra a imagem do Brasil. Havia quem dissesse que só existia fome na Índia, não aqui. Josué quebrou esse tabu, colocando o tema na sala de estar da política nacional”, relembra o jornalista e pesquisador, Vandeck Santiago, autor do livro Josué de Castro – o gênio silenciado.
Josué nasceu no Recife, no dia 05 de setembro de 1908. Ele foi multidisciplinar. Formado em medicina no Rio de Janeiro, transitou com excelência em áreas como geografia, ciência social, nutrição e na política. Josué foi deputado federal por duas vezes, eleito pelo Partido Trabalhista Brasileiro(PTB) para representar o estado de Pernambuco. Na Câmara Federal, pautou, entre outros temas, a reforma agrária.
Josué foi indicado cinco vezes ao prêmio Nobel da Paz. Nas décadas de 1950 e 1960, ele comandou a Organização das Nações Unidas para Alimentação(FAO) e foi o embaixador do Brasil na ONU.
Em 1964, com o golpe militar, o intelectual pernambucano, reconhecido internacionalmente por seus livros e pesquisas, foi transformado em inimigo da pátria e incluído na lista dos 100 primeiros brasileiros que tiveram os direitos políticos cassados pelo regime.
O geógrafo reconheceu, no livro Homens e Caranguejos,(1967) que foi a experiência nas ruas do Recife que lhe deu sensibilidade para entender o fenômeno da fome.
“Não foi na Sorbonne nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome. O fenômeno se revelou espontaneamente a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife: Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta é que foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos:
Tese ainda atual
No Brasil, muitas dessas teses inspiraram iniciativas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), a criação de estoques reguladores, a defesa da reforma agrária, a criação de Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional, além de programas voltados à segurança alimentar, como o Fome Zero. Em 2014, o país deixou o Mapa da Fome da ONU pela primeira vez, em grande parte graças a políticas estruturadas a partir do pensamento de Josué.
“Josué já pensava em restaurantes populares, merenda escolar nos anos 1950. Mas ele insistia: sem uma decisão de governo, a fome sempre volta. Foi essa visão que inspirou os avanços mais consistentes nos anos 2000”, observa Remígio.
José Graziano, diretor do Instituto Fome Zero, ex-ministro de Segurança Alimentar do governo Lula e ex-diretor-geral da FAO revela que órgãos internacionais já reconhecem como cruciais propostas feitas por Josué de Castro há 60 anos.
“Ele insistia em estoques reguladores e compras públicas da agricultura familiar. Essa ideia voltou agora, até o Banco Mundial, símbolo do liberalismo, recomendou que países façam estoques diante dos riscos climáticos. É um item simbólico que mostra a atualidade do pensamento dele.”
Diante do tarifaço imposto pelo presidente Donald Trump contra o Brasil e das enchentes do Rio Grande do Sul, o tema do estoque de alimentos ganhou destaque no noticiário e revelou como o controle do abastecimento feito pelo Estado é crucial para assegurar alimentos para a população.
“Ele dizia que a fome só seria superada com reforma agrária. Mas também defendia medidas imediatas: melhor distribuição dos alimentos e fortalecimento da produção”, ressalta Santiago.
A geopolítica da fome
No campo internacional, Josué já alertava para o uso da fome como arma de guerra. Sete décadas depois, sua análise permanece atual diante da crise humanitária em Gaza, onde a população enfrenta restrições de acesso a alimentos impostas pelo bloqueio militar israelense.
“Hoje a fome que mata diretamente está em Gaza, no Sudão, na Etiópia — sempre em países com conflitos e bloqueios que impedem a entrada de ajuda humanitária. Josué associava paz e fome, mostrando que onde há guerra, há fome, e vice-versa. Essa relação é central no pensamento dele e continua válida.”, aponta José Graziano,
“Um exército dominar a alimentação de outro país ataca diretamente a soberania daquele território. O que acontece hoje na Palestina tem nome: é genocídio. A fome está sendo utilizada como arma de guerra para subjugar um povo”, afirma Remígio.

A obra de Josué também antecipou debates contemporâneos sobre meio ambiente. Ele criticava a monocultura e defendia o uso sustentável da terra e a preservação das fontes de água.
“A Amazônia é hoje a região de maior insegurança alimentar do Brasil, superando o Nordeste. Lá existe uma fome rural e urbana ao mesmo tempo. No restante do país, a fome é basicamente urbana, marcada pela população de rua e pelos desertos alimentares das periferias.”, descreve Graziano
“Josué já denunciava o consumo exagerado de água e o esgotamento do solo provocado pela monocultura, como no caso da cana-de-açúcar. Hoje, a situação é ainda mais grave, porque o agronegócio opera em escala global, usando agrotóxicos e insumos químicos que contaminam o ambiente e as pessoas”, explica Sônia Lucena, nutricionista, professora aposentada da UFPE e vice-diretora do Centro Sabiá
Inspiração para movimentos populares
Essas ideias ressoam nas políticas de incentivo à agroecologia e na criação de hortas comunitárias e cozinhas populares, que fortalecem a soberania alimentar e oferecem alternativas contra os chamados “desertos alimentares”. Estes chamados “desertos” são áreas urbanas onde a população tem dificuldade de encontrar comida fresca, saudável e com preço acessível.
“As iniciativas de hortas comunitárias e agricultura urbana dialogam diretamente com as teses de Josué. Elas não produzem apenas alimento saudável, mas também educação social e política, sobretudo das mulheres. É um processo de empoderamento, de criação de novos hábitos alimentares e de valorização do meio ambiente. Josué já dizia que a defesa da natureza era central, e hoje a agroecologia mostra como isso é atual”, destaca a professora Sônia
“Hoje ele está vivo nos movimentos sociais, como o MST, nas cozinhas comunitárias, nas igrejas que distribuem comida e nas políticas públicas que tentam garantir autonomia alimentar. Quando vemos um restaurante popular, é Josué que está ali”, afirma Vandeck Santiago.
Para Graziano, o cenário social, hoje, no mundo é diferente daquele dos anos 1940 e 1950, mas os desafios contemporâneos podem ser resolvidos com base nas soluções propostas por Josué de Castro
“O que mudou em relação ao tempo de Josué é que não falta mais produção. O mundo tem excedentes de arroz, trigo, milho. O que falta é renda para comprar e acesso a alimentos frescos, como frutas e verduras. É nesse ponto que as ideias dele sobre políticas públicas e soberania alimentar continuam absolutamente atuais.”