Muntazar al-Zaidi ficou marcado na história por uma das maiores demonstrações contra a invasão dos Estados Unidos no Iraque. Ao lançar seu sapato contra o presidente estadunidense George W. Bush, em 2008, o jornalista iraquiano demonstrou uma insatisfação com os ataques que o povo iraquiano sofreu naquele momento. Hoje, vê o mesmo acontecendo com a Venezuela.
Ele esteve em Caracas para participar do evento Vozes do Novo Mundo. Em entrevista ao Brasil de Fato, Zahidi disse temer pelo futuro da Venezuela, principalmente pela escalada na ofensiva estadunidense no sul do Caribe.
“A Venezuela sofre hoje o que nós sofremos a partir de 1990. Os EUA bloquearam o Iraque para extrair o petróleo que tínhamos e nos proibiram de comprar qualquer coisa. A Venezuela vive uma situação parecida e, agora, com uma ameaça militar poderosa. Tenho medo do futuro na Venezuela e que a situação fique pior, porque os EUA não dão passos atrás antes de impor seu poder no mundo e mostrar seu domínio, especialmente em meio a ameaças sobre a sua soberania”, afirmou.
Mesmo com culturas e políticas diferentes, Zahidi entende que os dois países têm um inimigo em comum e que isso aproxima não só Venezuela e Iraque, mas todos os países do Sul Global que lutam contra o “imperialismo estadunidense”.
Para ele, a articulação entre os povos é um passo fundamental na construção de alternativas contra as agressões estadunidenses.
“Nós temos o mesmo inimigo, sofremos do poder do imperialismo e sofremos para encontrar qualquer ação conjunta entre nossos povos e das nossas políticas. Precisamos encontrar saídas para nossos desafios e isso demanda uma organização coletiva e uma articulação entre diferentes grupos e organizações”, disse.
Essa foi a segunda viagem de Zahidi à Venezuela em 10 anos. Ainda que não tenha uma aproximação política com o governo chavista, o jornalista afirma ser importante prestar solidariedade e apoiar o povo venezuelano em um momento de aumento de pressão estadunidense sobre Caracas.
Sapato contra Bush
Zahidi também comentou o momento que marcou a história da relação entre Iraque e Estados Unidos. Em meio a invasão estadunidense em Bagdá, o então presidente Bush deu um discurso falando sobre os interesses dos EUA naquela ocupação e sobre o “convite” feito a ele para visitar o Iraque.
O jornalista iraquiano estava presente na coletiva e, naquele momento, lançou seu sapato sobre o mandatário. Ele foi preso e disse que o ato simbólico de repúdio à Casa Branca teve como resultado o pior momento de sua vida.
“O episódio em si foi miserável. Eu fiz isso contra a ocupação e as mentiras de Bush. Quando ele disse que o Iraque o convidou para a Casa, eu queria dizer que ele era o mentiroso e o povo iraquiano era contra a ocupação. Por isso eu fiz aquilo. Para nós, é uma demonstração de insatisfação”, disse.
Confira outros trechos da entrevista exclusiva ao Brasil de Fato:
BdF: Na sua viagem para a Venezuela, o que você pôde perceber da relação entre os dois países hoje? Você vê semelhanças entre Venezuela e Iraque?
Zahidi: A minha visita à Venezuela teve como objetivo demonstrar apoio aos venezuelanos. Nós pudemos encontrar muitos pontos em comum entre os dois países. Fomos ocupados pelos EUA em 2003 e perdemos mais de 1 milhão de pessoas nessa guerra. Não vejo, neste momento, uma guerra na América Latina. Os EUA vão aplicar violência e veremos de que forma isso vai se dar. Por isso, acho que é importante demonstrar apoio nesse momento.
O evento Vozes do Novo Mundo propôs um diálogo entre comunicadores do mundo todo nesse enfrentamento ao que o Sul Global coloca como imperialismo dos Estados Unidos. Qual a importância disso neste momento?
É interessante dizer que eu vi mais nacionalismo por parte dos venezuelanos do que dos brasileiros. Ainda que eu ame o Brasil e tenha uma boa relação com o Brasil, principalmente pelo futebol. Mas a importância de ter comunicadores qualificados e com uma intenção política é muito importante para o jornalismo, especialmente contra o imperialismo.
Ter um espaço de troca para nós é fundamental para ter um tempo em meio às agressões do imperialismo. A união dos jornalistas, comunicadores da América Latina, Ásia, Europa, é importante para buscar caminhos contra o imperialismo e apresentar possibilidades para os ataques estadunidenses.
Falando especificamente sobre os ataques sofridos pela Venezuela, há um paralelo entre o que sofre o país caribenho hoje e o que sofreu o Iraque com os Estados Unidos?
Agora a Venezuela sofre o que nós sofremos em 1990. Os EUA bloquearam o Iraque para comprar petróleo e nos bloqueou de qualquer exportação, nós não podíamos vender nada no mercado internacional. Nesse ponto, é parecido com o que acontece na Venezuela. Tenho medo do futuro na Venezuela e que a situação fique pior, porque os EUA não dão passos atrás antes de impor seu poder no mundo e mostrar seu domínio
Cuba desde o começo da revolução foi saqueada pelos EUA. Esse país pobre e pequeno, conhecido pela sua revolução, sofre até hoje por causa da decisão de John Kennedy. E ninguém no mundo pergunta por quê até hoje. Mais de 60 anos e o bloqueio não terminou contra Cuba. Isso é insano. O Iraque sofreu com isso durante 13 anos, perdemos meio milhão de crianças, mesmo sem ter mísseis e grupos armados entre crianças. Eles entraram e não pediram autorização, prejudicou o acesso a medicamentos e produtos básicos. Venezuela vai pelo mesmo caminho, porque se colocou contra o imperialismo e se posicionou contra a intervenção dos EUA.
Quais foram as sequelas deixadas pelos Estados Unidos com a invasão? Como está o país hoje?
A invasão dos EUA segue hoje com impactos na economia, política, segurança… A invasão destruiu o Iraque e a comunidade iraquiana. Destruiu tudo. Depois da invasão, não há ninguém nos bairros que esqueça da invasão, porque temos problemas de abastecimento de água. Esses problemas estruturais não nos deixam esquecer da invasão. Não temos acesso a quase nada e uma indústria que ficou totalmente destruída.
Agora, nós só produzimos petróleo. Nossas indústrias pararam em 2003. Não temos plantação de nada. A invasão dos EUA destruiu até a produção de alimentos e essa sequela continuará por todo esse século.
Nós trazemos tudo de fora do Iraque: Turquia, Rússia, China, Irã… Trazemos até frutas. Temos um grande potencial, terras férteis, mas o país precisa se reconstruir do zero.
E quais são os desafios internos deixados pelos Estados Unidos, especialmente na questão política? Quais foram os reflexos desse momento para a política atual dos EUA?
A política hoje é composta por 20 partidos que vieram dos EUA em 2003 e hoje praticam uma corrupção sistêmica. Eles construíram uma milícia que controla os ministérios.
Todas as decisões desses ministérios partem de um acordo entre esses partidos e milícias. Nosso ministério de Educação tem milícias e partidos e todos os contratos voltam para esses grupos.
Isso tudo colocou uma série de desafios complexos para o Iraque. Nós lutamos contra os EUA e contra o ISIS, contra a corrupção, contra partidos que são apoiados por vizinhos como Irã, que apoiam partidos corruptos e dizem que não podem fazer nada. Isso é insano.
E acho importante falar abertamente sobre essa situação do Irã. Eles lutam contra os EUA e, ao mesmo tempo, são amigos dos amigos dos EUA no Iraque, são apoiadores de grupos que buscam o controle do Iraque para sustentar os EUA. Isso tudo deixa a situação muito complicada. Lutamos contra tudo isso e no final onde está a nossa humanidade?
Os Estados Unidos querem controlar nossas decisões. Quando nosso parlamento vota para qualquer lei, a ambição deles é controlar as políticas públicas e, para isso, precisam controlar os votos nesses espaços.
Isso me deixa profundamente triste, com a situação do meu povo, a minha sociedade, na Venezuela, em Gaza e até pelos pobres dos EUA.
Qual o papel da ONU hoje na resolução dos conflitos em diferentes partes do mundo, como na própria Venezuela?
Todo o papel da ONU está nas mãos dos EUA e esse é o poder do imperialismo. Nós estamos enfraquecidos e depender dessa organização é muito difícil. Nós não temos uma ONU, nós temos os EUA que controlam essa organização e que mente no mundo. É a Organização das Nações Unidas da América. A ONU diz o que o Iraque precisa, mas eles não nos autorizam vistos de trânsito para os cidadãos, por exemplo, para circular em outros países. É lamentável o papel dessa organização.
Como se deu a sua relação com os Estados Unidos? Você chegou a visitar o país alguma vez a trabalho?
Eu nunca visitei os EUA, eu me recusei a ir aos EUA. Eles tentaram me convidar três vezes e eu me recusei.
E falando um pouco sobre o momento em que você lança o sapato contra Bush: como foram os desdobramentos daquele episódio? E a sua situação no próprio Iraque invadido?
A situação com Bush foi muito difícil. Eu fiquei preso sozinho por três meses, depois me transferiram para outra prisão onde eu fiquei seis meses e foi o pior momento da minha vida. Eu tive alguns advogados para me defender e eu gastei nove meses na cadeia e terminei minha pena.
O episódio em si foi miserável. Eu fiz isso contra a ocupação e as mentiras de Bush quando ele disse que o Iraque o convidou para a Casa. Eu queria dizer que ele era o mentiroso e o povo iraquiano era contra a ocupação e por isso eu fiz aquilo. Para nós, é uma demonstração de insatisfação.