Se tem uma coisa que o Donald Trump tem feito com um didatismo quase pornográfico é esclarecer a concepção de liberdade que a extrema direita adotou como lema, e que diz defender.
Seus seguidores, inclusive no Brasil, afirmam que é em defesa do mundo livre que Trump tem tomado medidas de força, intervindo coercitivamente em outros países, em universidades, em governos locais, no poder Judiciário, na imprensa etc. Do outro lado, quem defende a democracia liberal ocidental e o Estado de Direito, enxerga Trump como um projeto de ditador, um autocrata a caminho de um governo totalitário.
Sem entrar na complexidade de um tema já abordado por tantos filósofos do ponto de vista existencial e humano, o que se trata aqui é da concepção social e política da liberdade. E sobre isso, vou trazer uma análise bem simples para tentar avaliar estes dois lados e as implicações que cada um deles tem.
Christian Maravelias, professor da Universidade de Estocolmo, apresenta o problema da liberdade de uma forma que eu acho muito útil para este propósito. Para ele, a liberdade tem duas concepções, muitas vezes não só conflitantes como antagônicas: “liberdade como autonomia” e “liberdade como potencial, ou como poder”.
Liberdade como autonomia significa não estar sujeito a influências ou coerções pessoais externas ou de terceiros (ou seja, ao poder dos outros), bem como não estar sujeito também às determinações das próprias paixões e instintos internos (no sentido defendido por Kant, por exemplo, de que ser livre é ser capaz de usar a razão, eticamente, para contrariar a natureza disciplinando as próprias pulsões, desejos e instintos).
Esta é, de certa forma, a concepção de liberdade nas modernas democracias constitucionais baseadas no Estado de Direito, em que o ordenamento da vida coletiva por meio de constituições e leis cria espaços de autonomia individual e proteção contra o poder pessoal dos demais. O Contrato Social de Rousseau delineia esta concepção brilhantemente, ao propor um acordo segundo o qual os “homens obedeceriam não a outros homens, mas tão somente à lei”. Em outra passagem ele diz, “a liberdade consiste menos em fazer a sua vontade do que em não ser submetido à vontade de outrem; ela consiste ainda em não submeter a vontade de outro à nossa”, algo que parece desenhado para o momento atual. Assim, para Rousseau, não há liberdade sem leis, nem onde alguém esteja acima das leis, porque não somos livres se tivermos que obedecer a vontade particular de outros que querem impor seus próprios interesses, vontades e desejos sobre nós.
Ou seja, liberdade é a autonomia em relação ao poder dos outros, não uma permissão ilimitada para fazer tudo aquilo que se deseja e que se tenha poder para fazer. Ao contrário, para preservar a autonomia individual, o próprio poder deve ser contido pelas leis, para que ninguém possa usá-lo para impor seus interesses, desejos e vontades sobre nós.
É claro que esta concepção de liberdade é para muitos desconfortável, porque ela implica em limitar a realização do desejo, seguir regras e leis, conter o potencial e o poder.
Muitos destes, inconformados com estas limitações, adotam uma concepção de liberdade como potencial, ou como poder, que significa que a pessoa só é livre “se puder explorar as inúmeras possibilidades oferecidas pelo mundo”. Ou seja, se ela está em condições de poder fazer tudo aquilo que deseja ou quer. Nesta concepção de liberdade, ao contrário da anterior, toda e qualquer estrutura, leis ou instituições que representem restrições ao desejo, à vontade e ao poder, restringem também a liberdade. Por isso, esta é a concepção de liberdade defendida pelo anarcocapitalismo, o neoliberalismo e a extrema direita política atual.
Porém, nas sociedades capitalistas modernas, marcadas por uma profunda desigualdade de poder (ou de aptidão para as pessoas “explorarem as inúmeras possibilidades oferecidas pelo mundo”, como diz o conceito), esta concepção acaba por igualar liberdade e poder; ou seja, num mundo profundamente desigual e sem regras que restringissem o uso do poder, só teria liberdade real quem detivesse o poder real.
Pensando no âmbito micro individual, muitos poderiam dizer que esta concepção dialoga com o pleno desenvolvimento dos potenciais humanos e da própria individualidade, mas, do ponto de vista social e político, de uma sociedade estruturada, relacional e profundamente desigual, esta concepção de liberdade retrocede ao “estado de natureza”, ao mundo ainda não civilizado e democrático, porque nela prevalece a lei do mais forte.
Então, se esta concepção prevalecesse, a liberdade corresponderia a liberar quem tem mais poder para agir coercitivamente sobre quem tem menos poder, visando impor os seus desejos, interesses e vontades.
Para as democracias atuais, marcadas por profundas desigualdades de poder, a grande questão da “liberdade como autonomia” se põe exatamente neste ponto: se só se é livre quando se tem autonomia, e só se tem autonomia quando se contém o uso do poder por meio das leis, só a existência de regras, leis e instituições independentes, democráticas e fortes – e não a ausência delas – pode garantir a nossa liberdade.
E o didatismo pornográfico de Trump? Bem, ele claramente iguala “liberdade” a “poder”; para ele, liberdade é para quem pode, ou para quem tem poder. E ele, como detém o máximo poder no mundo, usa-o coercitivamente para atacar a autonomia das universidades, os direitos dos imigrantes, a autonomia da imprensa, a autoridade dos governos locais, a independência do Judiciário, a soberania de nações estrangeiras como o Brasil, e assim por diante. Em todas estas situações ele está usando a sua “liberdade como poder” para atacar e limitar a “liberdade como autonomia” de todos aqueles que têm menos poder que ele, visando impor os seus interesses, desejos e vontades.
Como nesta concepção liberdade é igual a poder, Trump está deixando claro que todos aqueles que defendem uma “liberdade ilimitada”, sem regras, sem restrições, sem instituições independentes que a controle, sem simetria de responsabilidades e obediência às leis, o que estão defendendo mesmo não é a liberdade para todos, mas a posição dos poderosos, a lei do mais forte e o próprio poder pessoal e do seu grupo.
*Renato Santos de Souza é professor titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.