O Mais Médicos, do Governo Federal, destinou 160 vagas para 36 municípios do Rio de Janeiro este ano. Do total previsto para o estado, 62 são em áreas consideradas de média e alta vulnerabilidade. A atenção primária à saúde (APS) é a mais próxima da vida das pessoas, considerada a porta de entrada no Sistema Único de Saúde (SUS).
A capital, com maior número de vagas, convocou os médicos aprovados no edital a se apresentarem nesta segunda-feira (29). Solicitada pelo Brasil de Fato, a Prefeitura do Rio ainda não divulgou a lista das unidades básicas de saúde (UBSs) que receberão o reforço no município.
Mais de uma década desde a sua implementação, o programa consolidou a presença de profissionais nas UBSs do país, especialmente em locais remotos, áreas rurais e periferias das grandes cidades. Mais de 96% das unidades contam com médicos nas suas equipes, segundo o Censo do Ministério da Saúde (MS) divulgado este ano.
Legado nas favelas
As favelas e periferias cariocas foram as maiores beneficiadas com a iniciativa do Mais Médicos no Rio de Janeiro. A região que abrange os bairros da Penha, Olaria, Ramos, Vigário Geral, Ilha do Governador, Complexo da Maré e do Alemão, na zona norte, recebeu cerca de 30 profissionais na primeira fase do programa, praticamente todos cubanos na época.
O professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Cassiano Mendes Franco realizou entrevistas com esses médicos que atuaram em 2015, no auge do programa. Ao Brasil de Fato, o médico afirma que além da competência técnica, outra marca da participação cubana era a capacidade de criar vínculo com a comunidade.
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“Chamava a atenção a sensibilidade aguçada que eles tinham para a realidade social das pessoas, especialmente sobre a violência naqueles territórios. O conhecimento profundo da dinâmica comunitária e a inserção na vida local, algo que não encontramos com facilidade entre os médicos brasileiros na atenção primária”, reflete Franco sobre que fato de que no Brasil a formação especializada em Medicina de Família e Comunidade ainda é pouco difundida.
“A presença dos cubanos foi fundamental para a consolidação de programas como o de controle da tuberculose e da sífilis na gestação. Essas ações passaram a ser vistas e implementadas de forma integral pela equipe. Questões como drogadição e transtornos mentais, muito presentes nesse contexto, também ganharam uma abordagem mais qualificada”, verificou o professor do Departamento de Medicina em Atenção Primária à Saúde da UFRJ.
Histórico
A professora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) Ligia Giovanella explica que o desafio de um programa como o Mais Médicos, na sua concepção, foi dar uma resposta estratégica em meio a um cenário crítico. Em 2013, o país tinha menos de dois médicos por mil habitantes, e uma desigualdade regional na distribuição ainda mais alarmante.
“Era uma situação de rotatividade muito elevada dos médicos e com vazios assistenciais em muitas unidades básicas de saúde no país. Então, o programa proveu médicos para essas áreas”, relembra Giovanella, membro da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Diversas pesquisas demonstraram os impactos positivos do programa na redução da mortalidade, prevenção de doenças, e menos internações por condições sensíveis à atenção primária como hipertensão e diabete. Em sua primeira fase, o programa mobilizou 18 mil médicos, em sua maioria cubanos.
Em 2023, primeiro ano do governo Lula da Silva (PT), o programa passou por uma reformulação, aumentando o tempo de permanência e o número de médicos: hoje são cerca 26 mil, em sua maioria brasileiros. Atualmente, os médicos vinculados ao programa estão presentes em 4,2 mil municípios, segundo o Ministério da Saúde, o que representa uma cobertura de 77% do território nacional.
A política foi concebida em torno do provimento emergencial de médicos, mas também do investimento na infraestrutura das unidades de saúde e na ampliação da educação em medicina no país. Ao longo dos anos, esses fatores contribuíram para que hoje a maioria dos profissionais seja de brasileiros (87%) e com registro no Conselho Regional de Medicina (CRM) – cerca de 63%.
“A garantia da qualidade na atenção prestada, via formação, vai se sustentar em diversas estratégias de educação permanente, incluindo residências médicas multiprofissionais, mestrado profissional e especializações”, explica Giovanella à reportagem.
Ataques e desmonte
Sob o governo do ex-presidente condenado Jair Bolsonaro (PL), os ataques ao programa se intensificaram por conta da presença dos cubanos. Informações falsas de que estrangeiros estariam tomando o lugar de médicos brasileiros contaminaram o debate público. Ao deixarem o país em 2018, houve um grave cenário de abandono nas comunidades atendidas.
“Fizemos uma pesquisa em várias localidades do país, no início de 2019, e identificamos unidades básicas que ficaram até 6 meses sem médico por conta da retirada dos cubanos depois que o Bolsonaro venceu as eleições, dadas as ameaças feitas a esses profissionais”, relata a pesquisadora da Fiocruz, Ligia Giovanella, referência em atenção primária.

Segundo o professor de Medicina da UFRJ, Cassiano Mendes Franco, os cubanos deixaram o país preocupados com a situação do programa. “Eles desejavam que a população, uma vez acostumada a um cuidado de qualidade e a uma prática integral, passasse a reivindicar. Admiravam o SUS e enxergavam o acesso à saúde como uma conquista a ser preservada. Essa visão sobre a saúde como um direito inegociável era algo muito interessante”, afirmou.
O Mais Médicos voltou a ser alvo da extrema direita recentemente, com as sanções impostas pelos Estados Unidos aos gestores do programa, entre eles o Ministro da Saúde Alexandre Padilha. “São profissionais que buscaram implementar o Mais Médicos para garantir o direito universal à saúde no nosso país e agora são perseguidos de forma odiosa pelo governo Trump”, repudia a professora Giovanella.
Desafios
“Acho que a formação direcionada para a atenção primária é fundamental”, reflete a professora sobre o desafio histórico e ainda colocado para o programa de formar médicos voltados para atuação no SUS. Outro ponto continua sendo a fixação dos profissionais a longo prazo nos locais de atendimento. Embora o vínculo tenha sido estendido de três para quatro anos, não há garantia de estabilidade depois desse período.
A pesquisadora da ENSP defende uma carreira profissional da atenção primária no SUS com participação do Governo Federal, dos governos estaduais e municípios.
“São vínculos de trabalho que estão relacionados com uma bolsa de formação. Essa é uma grande questão. Resolve o provimento emergencial [de médicos], mas nós temos que ter formas que não sejam apenas emergenciais. Têm que ser carreiras para a atenção primária a saúde, para vinculação de profissionais, assim como nós temos, por exemplo, para os agentes comunitários de saúde, por meio de concurso público”, conclui Ligia Giovanella.
Na reformulação da política no governo Lula, em 2023, foram estabelecidos incentivos para a permanência dos médicos. Um deles, relacionado ao grau de vulnerabilidade da região, é a possibilidade de desconto na dívida com o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies).