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‘Até tu, Brutus?’: Defensoria do RJ interrompe bolsas para cotistas do programa Abdias do Nascimento

O diferencial do programa era principalmente a bolsa de estudo, que foi cortada

Por Flávia Villela

O ano de 2025 aponta para uma onda abrangente e potente de defesa da meritocracia e do enfraquecimento das políticas afirmativas. Começou com uma avalanche de ações e declarações desconcertantes do presidente recém-empossado dos EUA, Donald Trump, com proibição de que empresas contratadas pelo governo tenham metas de diversidade,  fechamento do escritório de diversidade, entre várias outras ações que têm como foco demonizar ações afirmativas e exaltar o esforço individual e as conquistas pessoais. 

As gigantes de tecnologia Meta e Google foram as primeiras a eliminar metas de diversidade na contratação para se alinharem ao governo trumpista. O negacionismo em relação às desigualdades social, racial e de gênero (e suas interseccionalidades) no acesso a oportunidades e a direitos na sociedade ganhou fôlego por estas bandas também.  

Na primeira semana de fevereiro, a imprensa divulgou que a vice-presidente da empresa Vale criticou em suas redes sociais o que chamou de “cultura woke”, expressão em inglês referente ao “despertar” sobre questões estruturais das injustiças, sobretudo, sociais e raciais na sociedade.  

A executiva sugeriu o fim de metas de inclusão e equidade na Vale e defendeu as de “mérito, excelência e inteligência”. A empresa negou mudança na política, mas a ideia foi ventilada pela número 2 de uma das maiores mineradoras do mundo. 

Nessa leva de retrocessos de conquistas de inclusão e diversidade étnico-racial, foi anunciada em fevereiro outra perda de direitos para a população menos favorecida no sistema de justiça brasileiro. E veio de uma das instituições mais improváveis: a Defensoria Pública do Rio de Janeiro.  

Com a justificativa de respeitar “os princípios da boa administração”, as “regras de economicidade e responsabilidade orçamentária”, a instituição anunciou a extinção do Programa de Bolsas e Monitoria para Cotistas Abdias do Nascimento “sob pena de caracterização de ato de improbidade administrativa que causa prejuízo ao erário”. 

Criado em 2021, o programa Abdias do Nascimento foi inspirado no Programa de Ação Afirmativa do Itamaraty e se mostrou ferramenta potente de inclusão e diversidade no interior da DPRJ; uma instituição em que 74% das/os defensoras/es são pessoas brancas e apenas 13,8% negras, embora haja desde 2014 política de cotas nos concursos para a carreira.   

O 1º Censo Étnico-Racial da DPRJ, lançado em 2021, pese os mais de 70 anos da instituição, revelou uma série de desafios, dentre eles que mais da metade dos/as colaboradores/as da pesquisa afirmou que há desigualdade racial dentro da instituição cuja maioria de usuários/as é negra.  

O diferencial do programa era principalmente a bolsa de estudo, que foi cortada. Destinada a custear dedicação exclusiva aos estudos, a bolsa do último edital, lançado em novembro de 2024, iria beneficiar quinze estudantes negras/os e indígenas com R$ 18 mil divididos em 12 prestações mensais de R$ 1,5 mil, além do acesso gratuito aos cursos preparatórios e ao material didático do curso da Defensoria, entre outras ferramentas de apoio.  

Importante destacar que concursos para carreiras jurídicas são um tanto excludentes devido aos altos custos dos livros de direito, das inscrições, passagens e hospedagens para candidatos de outras localidades para participar desses certames, muitos com várias fases. 

Até 2024, o programa beneficiou 67 bacharéis de direito, na sua maioria pessoas negras, com bolsas e aulas preparatórias gratuitas, segundo dados da própria Defensoria. Desse total, pelo menos dez foram aprovados/as em concursos públicos do sistema de justiça e alguns aguardavam resultados nas últimas fases de concursos, segundo dados da instituição. 

Não por acaso, nesse período, houve aprovação pela primeira vez de candidatas e candidatos cotistas, no 27º concurso, representando cerca de 27% das/os 74 candidatos/as aprovados/as.  

Com a missão constitucional de promover e proteger direitos, a Defensoria do Rio também é a primeira e única do país a criar uma Coordenadoria de Promoção da Equidade Racial, cujo principal objetivo é combater o racismo intramuros.

Iniciativa que contribuiu para que, ainda que timidamente, defensores e defensoras negras entrassem pelo regime de cotas nos últimos dois concursos, graças a uma série de ações internas para tornar a arquitetura, a cultura e as práticas da DPRJ menos racistas. 

Apesar de avanços na política de promoção da equidade racial na instituição, o racismo institucional resiste e persiste na DPRJ, como comprovam as estatísticas e estudos recentes. O encerramento de um programa como o Abdias do Nascimento representa um avanço dessa resistência. 

A luta antirracista e a democratização da Defensoria já não cabem no bolso da atual administração da DPRJ, os bem menos de 0,1% do orçamento da instituição tornou-se algoz da responsabilidade fiscal. O discurso de que inversões desse tipo violam “questões de ordem financeiro-orçamentária, inerentes à fonte de custeio”, lembram vários outros ao longo da história de governos e parlamentos para barrarem leis e programas sociais. 

Cortar gastos de determinados programas em prol de outros diz muito sobre prioridades. “Respeitar a economicidade e à responsabilidade fiscal” são justificativas legais e palatáveis para antigos chavões como “fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”, “primeiro colocar a casa em ordem” para adiar redistribuições de espaço e de poder. Independentemente das diferentes roupagens e mudanças de contextos no tempo e no espaço, no fim das contas, visam atender sempre aos interesses de uma minoria: a única a repartir o bolo que cresce à custa de uma maioria.  

*Flávia Villela  é jornalista e mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH/UFRJ) com dissertação sobre políticas antirracistas na Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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