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Somos natureza. Somos terra: Onde está nosso espírito selvagem?

Os povos originários portam a chave que pode nos salvar da extinção da vida como conhecemos hoje

Abril nos acena, nos chama para olharmos de frente a cor da emergência – o vermelho – para além das pautas de luta dos Povos Indígenas e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que se tornam mais visíveis neste mês com a 21ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, puxada pelos povos originários; e com a Jornada Nacional de Lutas em Defesa da Reforma Agrária, do MST, que começou no dia 1º e encerra dia 17 de abril, quando são lembradas as vítimas do massacre de Eldorado dos Carajás.

Essas duas vertentes de demandas, pelo direito ancestral, natural e democrático à terra para sobrevivência e manutenção de hábitos culturais, além do trabalho na agricultura familiar e na produção de alimentos, se tornaram símbolos de algo maior que perdemos ao longo dos tempos: a percepção de fazermos parte de um Todo e que a Vida precisa de cada um de nós.

Ativista da Nación Pachamama participou de atividades do Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília – Foto: Nación Pachamama

Somos todos Natureza, somos Terra. Aqui está a chave que os povos originários portam como o ato de respirar, desde o surgimento do homem no Planeta. Ela pode nos salvar da extinção da vida como conhecemos hoje. Não compreender isso, nos levou a um sistema econômico-social baseado no lucro acima de valores humanos, no individualismo e na dominação de poucos países em relação ao restante do mundo.

Esse sistema, aliado a uma indústria bélica de alta tecnologia e enorme poder de destruição, nos trouxe ao nível de insanidade atual, em que os seres vivos podem deixar de existir. Em suma, o sagrado direito de viver, vem sendo ao longo do tempo vilipendiado e suprimido, com genocídios, guerras e expulsão de populações de seus territórios. 

Aqui no Brasil, agora, encontraram formas mais elaboradas para tentar manter a lei do mais forte para “desterritorializar” povos originários que confiavam na demarcação das terras indígenas como está prevista na Constituição de 1988. Sabiamente, os indígenas brasileiros colocam como contraponto a “defesa da Constituição e da vida” como tema do ATL 2025.

A garantia das demarcações significa a existência desses povos irmãos com sua cultura, seus saberes, sua terra. No momento atual de ameaça climática, nunca foi tão importante preservarmos essa sabedoria. Defender os povos indígenas é defender a floresta em pé, as águas despoluídas, uma relação em equilíbrio e em harmonia com Pachamama.

Flexibilizar sobre marco temporal é um recuo gigantesco na luta secular dos indígenas brasileiros.

“Dizemos em uníssono com os companheiros e companheiras indígenas: Não ao Marco Temporal! – Foto: @alessandra_korap

A Consciência Pachamama em defesa da Vida está totalmente alinhada com a luta dos povos indígenas, que muito têm a nos ensinar sobre preservação e unidade da Vida. Dizemos em uníssono com os companheiros e companheiras indígenas, honrando nossa ancestralidade e os que tombaram em defesa da terra dos seus ancestrais e da sua cultura: Não ao Marco Temporal

Esperamos que a Suprema Corte esteja muito atenta ao seu papel de guardiã da Constituição. Caso contrário, uma revisão da Carta Magna para flexibilizar interesses de lucros, só servirá de aval para a continuidade do saque aos territórios sagrados dos povos indígenas, numa versão atualizada, aparentemente mais “light” (à moda lawfare), de tomar as terras indígenas para atender aos interesses do agronegócio e mineradoras. Dizemos, “aparentemente”, pois caso essa flexibilização aconteça, tudo passará a ser “de acordo com a lei”. Conseguem imaginar?

E a Reforma Agrária?

Não por acaso, e pelo mesmo motivo de interesses de expansão e lucros do agronegócio e das mineradoras, a reforma agrária vem sendo adiada desde que o Brasil se entende como país da comunidade de nações. Entra governo e sai governo e a situação continua a mesma.

O Movimento dos Sem Terra está em mais uma jornada de luta pela reforma agrária. Como os indígenas, o pessoal do MST aprendeu a ser paciente e resiliente, sem deixar de lutar. Eles avançaram muito, ultimamente, na forma como produzem. Estão procurando trabalhar o solo de forma natural, sem agredir a terra com agrotóxico, estão aplicando conceitos de agroecologia e agrofloresta, por exemplo. Por meio de cooperativas, já conseguem produzir em larga escala, arroz agroecológico, uma forma de respeitar Pachamama, que é um ser vivo.

Nunca é demais lembrar de que somos terra, somos natureza. E nesse sentido, a organização e o compromisso com as melhores práticas de produção de alimentos por meio da agricultura familiar é um exemplo. Falta os governos, o Congresso Nacional e a sociedade brasileira encarar a reforma agrária como algo saudável, natural. Antinatural são as imensas terras improdutivas ficarem na mão de pouquíssimos, enquanto milhares de famílias estão querendo trabalhar na terra, viver dela para sobrevivência e cuidá-la como uma Mãe que tudo nos dá. Nosso país é imenso e há lugar para todos.

Criar ministérios para tratar da reforma agrária e dos povos indígenas é uma medida positiva em princípio, mas se não acontecerem avanços significativos nessas duas vertentes de luta pela terra, será só mais um gesto a encobrir uma inação, com ou sem justificativas.

A luta dos povos indígenas e dos sem terras interessa a todos que se colocam em defesa da Vida no planeta e que respeitam as diferenças e sonham com um mundo mais justo e feliz para todos!
   
Onde está nosso espírito selvagem?

* Zulema Mendizabal (Marília Rabelo) é ativista do movimento Nación Pachamama.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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