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Qualidade ou quantidade de vida?

Até que ponto a mão humana e o capitalismo podem intervir num processo da natureza?

violeta ficou mal desde que a gata cristie partiu. No início, parecia indiferente, até que algo aconteceu e começou a procura-la pela casa toda. Desde esse dia, a busca se repetia em todos os cantos, todas as tardezinhas. Quando finalmente entendeu que ela não voltaria mais, começou a emagrecer. Ele que amava comer!

Começamos a oferecer comida insistentemente, a ele, a quem chamávamos carinhosamente de gordo e, em bom porteñés, de dogor, tinha virado o magrelo.

Um dia me perguntei por que eu o chamava pelo seu tamanho, e, até, pelo “meu velho”. 

Várias vezes marcamos consultas e cogitamos exames. Mas viole era o gato mais selvagem-caseiro e arisco que conheci. Várias vezes perdemos consultas, pois ele não era gato de entrar em caixinhas.

Gato meu tem que ser fora da caixa mesmo, pensei, sem conseguir rir.

Também não era gato de colo, como para poder trazer uma veterinária em casa. Ao ouvir a campainha, se escondia dentro da cama, se tentássemos pegá-lo, corria mais rápido, ficando estressadamente escondido, por horas.

Em janeiro, com um esforço absurdo, e uma alta-tensão que duraria dias, o levamos na doutora.  Recebeu soro e aproveitamos para tirar sangue. Os exames mostrariam que já estava mal dos rins.

O ideal teria sido seguir dando soro, a cada dois ou três dias.

O ideal para quem, perguntou ele, enquanto se lavava alegremente na minha cama.

violeta é o próprio ser a lutar pela qualidade de vida e não a reivindicar a quantidade dos dias.

Na quarta-feira passada, uma hora em que ele se aproximou, senti o cheiro da morte. O mesmo que teve a gata cristie nos seus dias finais. Pedi para me esperar até depois da sexta-feira, dia em que lançaria meu novo livro. Livro dedicado à memoria da gata.

Sexta-feira ele deixou definitivamente de beber água e de comer.

Não é que aceitamos de maneira passiva, tentei dar água com a seringa, mas ele recusou de um modo muito firme, traçando a mesma linha que ela traçara um ano e meio atrás.

violeta é um gato. violeta é natureza. Domingo, quando já caminhava meio bamba, foi para a grama do terraço. Ficou escondido no lugar que mais altas estão as plantinhas e mais ficava mimetizado com o meio. Mais tarde, conversando com Clarisse, a outra humana dele, lembramos que é ali que estão as cinzas dela, da gata cristie.

Domingo à tarde ele já estava bem quietinho, contudo, às vezes fazia uns movimentos com a língua. Quereria voltar a vomitar, sem ter nada já a sair? Chamamos à veterinária que vinha dar soro a cristie e que na hora da passagem deu uma injeção para não sentir dores. A ideia era repetir isso. Mas ela também queria lhe dar soro, impressionada com a desidratação dele. Parecia um déjà vu. Tive que repetir as palavras de um ano e meio atrás, ninguém morre de saúde. É claro que se não tomava, nem aceitava, água há três dias estaria muito desidratado. Ela até falou em internação. Oi? Ele estava a umas 12, 15 horas do seu último respiro na Terra. Em casa, conosco, no seu lar. Trocar isso por morrer plugado a um $oro que lhe estenderia a vida?

Até que ponto a mão humana e o capitalismo podem intervir num processo da natureza?

Manter-se firme nessa posição e deixa-lo ir em paz, lembrando que foi um gato que optou pela qualidade de vida e não pela quantidade dos dias.

Lembrei de umas décadas atrás, ainda em Buenos Aires, minha mãe com uma doença terminal sendo internada e um mediquinho me gritando no meio do corre-dor que o que eu queria era ver ela morta.

Essa era uma fala-bala atirada direto do falo do $istema.

Agora, eu não permitiria isso. Nem nada.

Violeta fez sua passagem na segunda-feira de manhã, quando eu escrevia esta coluna.

Foi sabendo-se um gato amado e protegido e escutado.

Vai em paz, viu viu, meu bichinho amado!

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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