Presente na legislação brasileira desde 1891 e reforçada na Constituição Cidadã de 1988, a laicidade do Estado foi tema de audiência da Câmara Municipal de São Leopoldo, região metropolitana de Porto Alegre, na noite de quarta-feira (16). Promovido pela vereadora Karina Camilo (PT), o evento lotou o auditório do parlamento municipal, reunindo lideranças religiosas dos mais diversos segmentos, sociedade civil, movimentos sociais e parlamentares. Além de debater a impotâncoa do tema, também foi apresentada a proposta do Projeto de Lei para a criação do Dia de Conscientização do Estado Laico no município.
O debate aconteceu dois dias após o Legislativo da cidade realizar sessão solene em homenagem ao Conselho de Pastores de São Leopoldo, depois que o prefeito Heliomar Franco (PL) sancionou a lei municipal que reconhece as religiões como serviço essencial em momentos de crise. A sessão conduzida pelo vereador do PP, Jailson Nardes, autor da lei, fooi marcada por palavras de louvor e oração com a presença de um público predominante de religiões evangélicas.
“Quando nos trouxeram essa lei para aprovar, nós, os vereadores do PT, havíamos entendido que ela seria para todas as religiões, organizações. Quando vimos o evento de comemoração da sanção, não vimos o nosso povo ali representado. Precisamos estar atentos para fazer a resistência na nossa cidade. A religião é um dos temas que precisamos cuidar com carinho, para que nem o povo, nem o território seja atacado”, afirmou Camilo. De acordo a parlamentar, nunca a questão do Estado laico foi tão importante ser discutida quanto no atual cenário.

O debate foi realizado em parceria com o Movimento Brasil Laico. Conforme apontou a representante estadual do movimento, Paula Lau, a proposta da criação do Dia de Conscientização do Estado Laico prevê a celebração no dia 5 de outubro, aniversário da Constituição Cidadã de 1988. Segundo Lau, já está acontecendo um movimento no Congresso Nacional, através do pastor Henrique Vieira, de criar a bancada do Estado laico.
“A democracia corresponde à laicidade. Nós precisamos da laicidade para garantir a democracia. É necessário que ações e conscientização aconteçam com urgência na área da educação, cultura, saúde e assistência social.” defendeu a representante. O Movimento Estado Laico nasceu em 2018, nas eleições do Recife, e hoje está presente em 15 estados.
Pelo direito a diversidade religiosa
Para a integrante do Fórum Inter-Religioso e Ecumênico do Rio Grande do Sul, Cibele Kuss, o Estado laico é extremamente importante porque garante que as pessoas não sejam expostas à obrigatoriedades de crenças religiosas contra a sua vontade ou contra seus princípios. “Nós precisamos alcançar um patamar em que não esteja mais presente na nossa linguagem expressões como ‘o Brasil é um país cristão’. Porque é justamente o que o Estado laico preconiza que o Estado brasileiro não pode privilegiar nenhuma instituição religiosa em detrimento de outras e nem permitir que as expressões religiosas influenciem em políticas públicas, principalmente no campo da saúde e educação, as duas áreas mais afetadas.” Kuss também alertou sobre a crescente intolerância contra povos indígenas e a destruição de suas casas de reza.
Na avaliação da psicóloga e zen-budista Monja Kokai, entre os obstáculos em relação ao do Estado laico está a contradição de se viver em uma República que afirma a existência da laicidade, mas que na prática não acontece. “É como se houvesse uma disputa entre a Bíblia e a Constituição, e não deveria haver esse impasse. Se vivemos em uma democracia, o que importa é a Constituição, que determina quais são as políticas públicas, valores, ações que contemplam todo o povo, de todas as tradições religiosas, inclusive os ateus. Defender o Estado laico é, ao mesmo tempo, defender todas as religiões, todas as orientações religiosas e ao mesmo tempo, nenhuma”, afirmou ao Brasil de Fato.

Ameaça à Constituição
“Transformar o ambiente legislativo em um culto é uma afronta ao Estado laico, é como rasgar a Constituição”, ressaltou o vice-presidente da Sociedade Espírita, José Bandeira. Para ele é preciso compreender, estudar. “Não temos nada contra a religião nenhuma. A melhor religião deve ser aquela que mais homens de bem fizerem, e menos hipócritas. Minhas amigas e meus amigos, líderes religiosos, o Deus das senhoras e dos senhores é bom? Sim. O Deus das senhoras e dos senhores é justo? Sim. Ele é amável? Sim. Ele é misericordioso? Sim. Então nós temos o mesmo Deus”, enfatizou.
Para o babalorixá do Ilê dos Orixás de São Leopoldo, Pai Dejair de Ogum, a Constituição é linda e é uma pena que não seja cumprida. “Onde é que está a bancada africanista, taonista, budista, e outras bancadas que apresentam segmentos religiosos?”, questionou.
Na avaliação do babalorixá, quando certas denominações religiosas se apoderam de um Deus, que não é o mesmo para todos, um Deus que persegue, oprime, que é capaz de dizimar os outros, isso é perigoso. “Mais perigoso ainda é quando essas pessoas, se apoderando desse Deus, estão administrando uma cidade, um estado, um país. Não queremos que os nossos administradores não tenham uma fé. Eles podem ter, mas dentro dos seus templos, terreiras. As pessoas, quando chegam a ocupar uma Assembleia Legislativa, Câmara de Vereadores, Senado, elas têm que ser o político que foi eleito para representar aquele povo.”
Sem Estado laico, não há democracia
Conforme observou o sociólogo e padre jesuíta José Follmann, vive-se hoje “situações absurdas” e tentativas de negar o que é constitucional. “Às vezes parte da pura ignorância do que está estabelecido no Brasil, mas também está por trás um projeto de teocracia, de um Estado confecional forte. O que deve ser feito é a formação dos responsáveis pelos espaços públicos, líderes religiosos e da base nas comunidades sobre o significado do Estado laico. Sem Estado laico, não há condições de democracia. Respeito à diversidade religiosa é o fundamental para que se possa viver democraticamente.”
Pastor evangélico da União Apostólica Remanescente, Fabrício Oliveira enfatizou a importância do Estado laico para a sociedade. “Eu professo a minha fé, acho que ela é uma verdade para mim, mas ela não pode ser uma verdade de todos. Ela não pode ser uma verdade única, porque eu tenho a minha verdade. Cada um tem a sua verdade, a sua maneira de crer, e ela deve ser respeitada. Nós precisamos de uma sociedade justa, que saiba respeitar o lugar de cada um.”

Citando pensadores como Karl Marx e o escritor israelense Amós Oz, o professor de Ciências Sociais da Faculdade Est, Oneide Bobsin, em sua intervenção destacou os perigos do fundamentalismo religioso nas decisões políticas. “O Estado não é uma entidade abstrata fora do mundo, ele é perpassado hoje, pelas forças da sociedade, e nós vivemos uma sociedade de classes. Temos que transformar esse tema em um tripé: Estado, instituições religiosas e mercado.”
De acordo com ele, há uma subjetividade, uma religiosidade de mercado que é mais poderosa que as igrejas. “O mercado é mais fundamentalista do que algumas igrejas. Porque fundamentalismo não é uma coisa de uma religião. É uma forma de ver o mundo. Onde eu me debruço sobre o outro, eliminando o outro. Porque o meu ponto de vista deve ser dominante. Nós temos que fazer um debate público sobre isso.”
Laicidade no parlamento
O deputado estadual Matheus Gomes (Psol) destacou que a religião, como imposição, ao longo da história, sempre teve a ver com violência. Para o parlamentar, falar de efetivação do Estado laico é pensar no presente. “Nosso país, nesse momento, está sendo dividido por aqueles que têm usado a religião para professar o ódio e a violência”, afirma. “Também é pensar no futuro, porque nós somos um país com diferentes contribuições culturais, diferentes etnias, que sempre recebemos e continuamos recebendo pessoas do mundo inteiro. A efetivação do Estado laico é uma ideia que é essencialmente coletiva”, reforçou.
Suplente de deputada estadual e coordenadora da bancada do PT, Ana Affonso, reforçou que existem campos religiosos sobrepondo, dentro da política, o poder a demais setores. De acordo com ela, é preciso defender a diversidade, garantir a liberdade de expressão, a liberdade de culto e o respeito. “Nós estamos num país onde existe a intolerância religiosa, e essa intolerância religiosa é majoritariamente contra as religiões de matriz africana. Isso significa uma base estruturante de um racismo religioso. É preciso também trazer isso como um elemento do nosso debate”, pontuou.
Por fim o deputado federal Dionilso Marcon (PT-RS), afirmou que defender a laicidade do Estado não é uma questão pequena, mas defendeu que é preciso que a mesma seja garantida. “Precisamos enfrentar esse debate e ir à luta para combater a discriminação e o favorecimento de certas religiões.”
