Por Rudá Ricci
No início de minha juventude, participei de “portas de fábrica”, o nome que dávamos para as panfletagens na mudança de turno das enormes fábricas automobilísticas da região do ABCD paulista. Entregava boletins da Oposição Metalúrgica de São Paulo.
O que mais impressionava era o mar de gente na troca de turnos. Milhares, como na entrada de um megashow. Se olhasse para um lado ou outro, parecia que uma onda disforme se movia para a frente e se misturava com o contrafluxo, formando um tsunami de operários. Não tinha como não sentir o poder operário.
Os olhos da massa operária se encontravam rapidamente e se reconheciam no orgulho de estar empregado numa grande empresa, de ser parte do motor industrial do país, de sofrer as mesmas chateações provocadas pelos chefes de setor, mas, também, as mesmas vantagens que recebia no parcelamento para adquirir parte do que produzia e nas fartas cestas de Natal, no cansaço das horas extras trabalhadas.
Ali estava a identidade operária registrada nos estudos de sociologia e literatura de esquerda.
As coisas mudaram
No final dos anos 1990 e início do século atual, as coisas mudaram. De um lado, novas tecnologias substituíam categorias inteiras, como a dos bancários. De outro, novas formas de organização da produção que tornavam obsoletas as linhas de montagem do tempo fordista.
Entrava em campo as “células de produção” da Toyota ou o “sistema de docas” da Volvo. Pequenos grupos de operários especializados, alguns, já despontando como multifuncionais (os “polivalentes”) se debruçavam na produção de um único carro. No caso da Volvo, elegiam o chefe, o coordenador do grupo de produção. Os operários trocavam informações baseados nas especializações de cada um, formando uma colmeia. A identidade operária se fragmentava.
Agora, o que dizer das novas tecnologias de produção empregadas neste primeiro quarto de século 21?
Século XXI
Na linha de produção industrial atual, pululam novidades que vão da automação de processos, ao uso da Internet das Coisas (IoT), passando pela inteligência artificial (IA), a impressão 3D e a computação em nuvem.
A Automação de Processos emprega robôs, máquinas automáticas e sistemas de controle automatizados para executar tarefas repetitivas e complexas, reduzindo a necessidade de mão de obra e aumentando a precisão e a velocidade da produção.
Pesquisa da Deloitte (rede global de empresas de serviços profissionais, voltada para auditorias, consultorias e gestão de riscos) revelou que 84% das empresas que adotaram a automação reduziram os custos operacionais em até 20%, incluindo mão de obra. A rede global de serviços profissionais PwC revelou que 45% das tarefas de produção podem ser automatizadas, o que poderia liberar até 50% da força de trabalho em alguns setores.
Já a Internet das Coisas (IoT), implementa conexões de máquinas, sensores e dispositivos na linha de produção para coleta e transmissão de dados em tempo real, permitindo o monitoramento, o controle e a otimização do processo produtivo.
A adoção de Inteligência Artificial (IA) nas fábricas contemporâneas envolve aplicação de algoritmos para analisar dados da produção, identificar padrões, prever falhas e tomar decisões automatizadas para melhorar a eficiência e a qualidade dos produtos.
As previsões sobre o potencial da inteligência artificial e de tecnologias associadas sobre os empregos variam bastante conforme os estudos. Um dos mais notórios, dos pesquisadores Carl Frey e Michael Osbourne, divulgado em 2013, apontava 47% dos empregos nos Estados Unidos como passíveis de substituição por máquinas inteligentes. Outro estudo, dos pesquisadores Melanie Arntz, Terry Gregory e Ulrich Zierahn, de 2016, estimou que o potencial de substituição seria de apenas 9%.
Sobre a utilização de impressoras 3D para fabricar protótipos, peças personalizadas e produtos em pequena escala, permitindo maior flexibilidade e rapidez no desenvolvimento de novos produtos, não há necessariamente substituição de mão de obra.
Em muitos casos, gera ampliação de contratações de pessoal qualificado, como engenharia e design. Está sendo amplamente empregada na saúde (produção de próteses, órgãos e equipamentos médicos), construção civil (impressão de casas e estruturas) e indústria (fabricação de peças e protótipos), criando oportunidades em diferentes áreas.
A adoção da impressão 3D na construção civil pode reduzir o custo da mão de obra em 50% a 80%, além de aumentar a produtividade em 50% a 70%.
Finalmente a Computação em Nuvem promove o armazenamento e processamento de dados da linha de produção em servidores remotos, facilitando o acesso a informações, o compartilhamento de dados entre diferentes departamentos. Neste caso, alimenta e impulsiona a digitalização e a automação que, por sua vez, substituem trabalho humano.
É preciso que mudemos
O impacto das novas tecnologias na formação de consciência coletiva é devastador porque fomenta soluções individuais para fugir do risco de demissões ou substituição por novas tecnologias. É esta mudança na consciência dos trabalhadores enquanto tal que afeta profundamente a organização social e política nos tempos atuais.
A correria pela sobrevivência e o estado de insegurança e imprevisibilidade já se instalou na racionalidade e planejamento dos trabalhadores. Richard Sennett publicou, alguns anos atrás, um interessante estudo sobre como este novo mercado de trabalho impactava o caráter dos trabalhadores.
Tenho a impressão de que parte do campo progressista se debate com esta rápida mudança na vida social e aguarda alguma solução mágica, quando não se desespera e passa a copiar o que a extrema-direita faz (com sinal ideológico trocado, evidentemente).
O mundo do trabalho mudou e exige que mudemos rapidamente. Para isso, é preciso estudo, debate e … paciência. O caminho menos produtivo é o dos atalhos ou da postura defensiva, cujo horizonte nunca aparece
Rudá Ricci é cientista político e presidente do Instituto Cultiva. E-mail: [email protected]
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal