Fundado em 15 de abril de 1905, o primeiro sindicato que se tem registro no Brasil carrega um legado de lutas dos estivadores por melhores condições de trabalho. Na época, a então denominada Sociedade Resistência reuniu trabalhadores que executavam diferentes modalidades de serviço na região portuária do Rio de Janeiro.
Embora a estiva seja um trabalho específico dentro das embarcações, o jargão dos trabalhadores portuários adotou a autoidentificação como estivador ou simplesmente operários do Cais do Porto. É também nesse contexto que os estivadores – hoje mais conhecidos como arrumadores – contribuíram para a formação de uma identidade como classe trabalhadora.
Segundo a historiadora Lívia Cintra Berdu, da Universidade Federal Fluminense (UFF), é possível afirmar que a mão de obra no Cais do Porto era composta em sua maioria por homens negros livres e descendentes de escravizados. Nesse sentido, a organização de um sindicato representou a luta por dignidade e direitos de uma força de trabalho que pela primeira vez era de indivíduos livres.
Na virada do século 20, o trabalho na região portuária consistia no transporte de mercadorias dos armazéns e trapiches ao cais, principalmente de carvão e sacas de café, o que exigia um esforço físico brutal. Até então, predominava o sistema de seleção “avulso” de mão de obra, em que um número de homens era escolhido aleatoriamente para cumprir o serviço naquele dia, sem qualquer garantia de relação de trabalho.
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Em suas pesquisas, Maria Cecília Velasco e Cruz identificou que o modelo de “contratação”, além de beneficiar os empregadores, acirrava os embates já existentes entre os grupos étnicos de trabalhadores: brancos, negros, brasileiros e imigrantes disputavam entre si uma oportunidade de sustento. A estrutura caótica e arbitrária do mercado de trabalho portuário seria um dos principais motivos para o surgimento do sindicato.
“A Resistência era um verdadeiro reduto negro, indicando nitidamente que os escravos e os homens livres de cor seguraram com unhas e dentes os seus postos de trabalho, apesar de terem sofrido por muitos anos a concorrência dos imigrantes, sobretudo dos portugueses”, escreveu a professora do Departamento de Ciência Política Universidade Federal da Bahia (Ufba) no artigo “Tradições negras na formação de um sindicato: Sociedade de Resistência dos Trabalhadores do Trapiche e Café, Rio de Janeiro, 1905-1930” (acesse neste link).
Resistência e lutas
A pesquisadora Lívia Cintra Berdu, da UFF, chama atenção para uma greve na cidade que teve ampla adesão entre operários da estiva em seu artigo “O Sindicato “Resistência”: Trabalhadores negros libertos na Zona Portuária do Rio de Janeiro” (acesse neste link). A participação conquistou jornada de oito horas para a categoria e abriu caminho para a construção da União dos Operários Estivadores, que depois seria Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café.
“Acreditamos ser de extrema importância resgatar a história dessa importante ferramenta de luta desses trabalhadores durante o processo de formação da classe trabalhadora no Rio de Janeiro, tendo em vista que seus protagonistas estavam diretamente ligados ao período escravista no país. O Sindicato Resistência expressa nesse sentido, que ao contrário do que colocou grande parte da historiografia nacional, aos trabalhadores escravizados e libertos não cabem pré-noções limitadoras e características atribuídas como a apatia política, a passividade e alienação”, concluiu a pesquisadora.

Um dos principais objetivos do sindicato era gerenciar a força de trabalho no Cais do Porto de forma coletiva e eficaz. Para isso, passaram a reivindicar o modelo chamado Closed Shop – que continua vigente – e assegura que os sindicatos controlem a mão de obra e o preço dos serviços, o que fortaleceu o conjunto dos trabalhadores nas negociações.
A greve de 1906 enfrentou forte oposição do patronato e violência policial. Ainda assim, resultou em “salários relativamente elevados” para os sócios do Sindicato Resistência, conforme noticiou a imprensa. O manifesto escrito pelo diretor da entidade à época, Aristides Figueira de Souza, dá o tom do que representou a greve geral daquele ano:
“O proletariado brasileiro não podia, por mais tempo, deixar de levantar os seus protestos, desde que o regime da injustiça social, da desigualdade de classe, não está limitado por fronteiras, senão que é universal. Ele quer dignificar-se, quer que o seu trabalho única fonte de toda riqueza social, não represente mais, para ele, a miséria, e para os que nada fazem a riqueza. Pois companheiros, é chegado o momento de nós pedirmos o aumento de salário, porque o homem que trabalha tem o direito de contratar as condições que pode trabalhar, dando valor ao seu serviço mediante um acordo com os patrões”, diz o texto.
Raízes no samba
A escola de samba Império Serrano guarda raízes com os trabalhadores portuários e suas famílias que moravam no bairro de Madureira, no subúrbio carioca. Um deles foi o compositor Aniceto do Império, que ingressou como estivador no Cais do Porto nos anos 1940 e ajudou a fundar a agremiação em 1947.
No curta-metragem Dia de Alforria (1980), de Zózimo Bulbul, Aniceto do Império relembrou sua trajetória no samba e na luta sindical em uma época que marcou o início da consolidação de leis trabalhistas no país. Contou ainda que o nome Resistência era uma alusão ao peso das cargas que os estivadores e carregadores portuários suportavam sobre as cabeças.
“Fomos para o Ministério do Trabalho e voltamos com a bandeira da vitória. Conseguimos reivindicações até de 400%. Vejam bem como nós tínhamos razão em paralisar na greve. Hoje aposentado fico pensando o tanto e quanto sofri durante o tempo que na Resistência estive”, contou no documentário disponível no YouTube (neste link).
A liderança do sindicato dos Arrumadores era também um mestre do partido alto. Uma das últimas demonstrações dos seus versos de improviso ocorreu em entrevista ao cineasta Eduardo Coutinho no documentário O Fio da Memória (1991), em meio ao Centenário da Abolição.
A relação do Império Serrano com os trabalhadores da zona portuária fica evidente nos diversos sambas que mencionam “resistência” e “luta pela liberdade”. No enredo O Rio corre para o mar (2001), parceria com Arlindo Cruz, a escola exalta o ofício da estiva e a tradição sindical dos trabalhadores negros do cais.
“Sou carioca da gema, sou resistência / Sou Império, sim “sinhô” / Abriu o porto ioiô, é porta aberta iaiá / É o comércio, é o progresso da cidade / E a cidade cresceu, o mundo então conheceu / O berço da felicidade / Toda ladeira cantou, a freguesia sorriu / A velha praça inteira aplaudiu / E assim nasceu a estiva / O primeiro sindicato do Brasil / Entre revolta de dor / E um canto negro de fé / O nosso povo exportou samba no pé”, cantou a Império (ouça neste link).
No ano de fundação do Império, a Sociedade Resistência era um sindicato conhecido e consolidado. Sua sede própria fica em um prédio na rua do Livramento, no bairro Saúde. Hoje, a entidade preserva a história e atende como Sindicato dos Portuários em Capatazia e Arrumadores no Comércio Armazenador no Município do Rio de Janeiro.