A educação é uma das áreas prioritárias de atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que desde a sua origem desenvolveu processos educativos e incluiu como uma das prioridades, a luta pela universalização do direito à escola pública de qualidade social, da infância à universidade. Mas qual o impacto de uma educação pública de qualidade na vida das pessoas? Para responder essa e outras perguntas, o Brasil de Fato conversou com Rogério Bié, jornalista pela Universidade Federal do Ceará (UFC), documentarista e gestor de mídias sociais da Secretaria da Educação do Ceará. Rogério é filho de pais agricultores, do Assentamento da Reforma Agrária Roseli Nunes, em Santa Quitéria, no Ceará e, recentemente, conquistou uma bolsa integral de mestrado na Universidade do Estado do Arizona, nos Estados Unidos. E vamos saber um pouco mais sobre sua trajetória até essa conquista.
Confira a entrevista.
Brasil de Fato: Era um sonho seu estudar em uma universidade nos Estados Unidos ou simplesmente foi a vida acontecendo e te levando para esse caminho?
Rogério Bié: Para falar de como cheguei até aqui sempre tenho que falar um pouco da minha trajetória, porque sempre gostei muito de inglês, desde criança. Eu sou o terceiro de seis filhos de pais agricultores, venho de um assentamento rural do MST e cresci sem muito acesso à aulas de inglês, à cursos, e eu lembro que a curiosidade despertou quando eu tinha mais ou menos oito anos, quando encontrei um dicionário de inglês na casa da minha tia, e eu não sabia nem o que era aquilo, era ‘good morning’, ‘good afternoon’. O dicionário tinha aquele apêndice todo colorido, com os cumprimentos, as estações do ano, o dia da semana e isso me interessou e uma coisa foi levando a outra.
No 6º ano comecei a ter aula de inglês na escola. No ensino médio eu fui estudar numa escola profissionalizante da minha cidade e foi aí que eu tive contato com todo um novo mundo de oportunidades, de coisas que eu sequer tinha imaginado que existiam e um programa que transformou muito a minha vida foi o programa Jovens Embaixadores, que é iniciativa da Embaixada dos Estados Unidos aqui no Brasil e todo ano seleciona estudantes da rede pública que vem de realidades vulnerabilizadas e que tem esse comprometimento com a mudança social.
Então foi um conjunto, uma coisa foi levando a outra, um quebra-cabeça que foi se juntando e estou muito feliz de estar prestes a começar esse novo capítulo da minha vida.
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Quais são as expectativas para o mestrado?
Eu fui aprovado para o mestrado de narrativas e medidas emergentes na Arizona State University, que fica no Campus de Los Angeles, especificamente na Califórnia. Esse curso é um programa relativamente novo, que foi criado faz mais ou menos três anos, então eu tô muito empolgado. Eu estou indo para o semestre de outono, então vou em agosto, no segundo semestre e eu tô muito empolgado primeiro porque vai ser uma mudança completa de país, nova cultura, nova universidade, vai ser uma mudança bem radical. Então estou um pouco nervoso, mas, ao mesmo tempo, muito empolgado, porque eu sempre fui extremamente curioso, aquele tipo de estudante que fosse o que fosse que aparecesse estava lá participando.
A longo prazo me vejo voltando para o Brasil, para minha comunidade, para democratizar essas tecnologias, de repente ensinar também, porque também pretendo já aplicar para o doutorado, expandir a pesquisa que eu vou começar no mestrado e democratizar o uso das tecnologias aqui no Brasil, para jovens jornalistas, documentaristas, que a gente consiga amplificar essas vozes, essas histórias, porque são tecnologias emergentes, como o nome já diz, então tem muito potencial aí para a gente explorar, muita coisa para aprender, e eu tô muito empolgado para fazer parte desse processo de construção.
Fale um pouco sobre a sua pesquisa de mestrado.
Eu pretendo continuar nesse âmbito do audiovisual, especificamente de documentários aplicados, para explorar como documentários interativos podem ajudar comunidades em situações de emergência climática, injustiça social, podem construir resiliência e isso está muito lincado com o meu trabalho de conclusão de curso, que eu fiz para me formar como jornalista na UFC, que foi o documentário Filhos do vento – energia eólica e os impactos socioambientais no quilombo do Cumbe, em Aracati.
Foi um documentário que eu produzi junto com minha grande amiga Euziene Bastos, que também é jornalista, e esse documentário explora a realidade e a luta de resistência da comunidade quilombola do Cumbe, que fica em Aracati, litoral Leste do Ceará com a chegada de uma usina eólica em 2008, uma das primeiras a chegar no estado do Ceará, sem o devido diálogo, sem a devida consulta, e desde então tem sido um processo de muito impacto nos modos de vida e a relação deles com o território, com a espiritualidade, a própria relação entre os moradores para além dos impactos físicos que também são muitos como o aterramento das dunas, a questão da fiação elétrica ao longo da comunidade, mas tem toda a questão social e humana que a gente explorou bastante nesse documentário, porque tem desde a questão do cerceamento do território, que há cercas no meio do caminho.
No Cumbe, por exemplo, para os moradores acessarem a praia para pescar, tirar sua renda, tem uma cerca da eólica no meio, então tem todo um processo de você fazer ofício para atravessar o seu território, um lugar que você cresceu conhecendo, isso é uma violência muito grande dentro da questão do racismo ambiental também. O documentário até mostra uma parte do cemitério do Cumbe, que fica dentro do parque eólico, e no começo eles tinham que fazer ofício para poder enterrar os seus ancestrais, imagina só. É um absurdo.
Essa foi a minha pesquisa e eu citei muito ela no meu processo de aplicação e eu quero muito continuar trabalhando com as comunidades que enfrentam essas situações de injustiça social, frente a grandes empreendimentos como é o caso da minha própria cidade. Eu venho de Santa Quitéria e lá tem todo um contexto da mina de urânio de Itataia que vem gerando debates dos riscos à saúde, até que ponto o empreendimento econômico vai, de fato, para a população, os riscos, a questão da água, a sustentabilidade local, os modos de vida da comunidade, então isso tem que ser levado em conta e estando nos Estados Unidos, uma posição global, digamos assim, eu quero explorar, levar essa minha visão enquanto estudante internacional, vindo do sul global para o mundo. É uma coisa que eu quero explorar muito a longo prazo também.
E o documentário está disponível no YouTube. A gente tem também o nosso perfil no Instagram que é @filhosdovento.doc e se quiserem convidar a gente para falar sobre o documentário estamos sempre super disponíveis. Compartilhem, assistam, e mandem pra gente o que é que vocês acharam.
E qual é a importância da educação do campo, ou no campo, para a sua formação pessoal e enquanto pesquisador?
É uma educação muito conectada com a comunidade, com a realidade onde a gente vive e a gente aprende muito sobre a coletividade e a valorização do nosso meio. Eu lembro que a primeira vez que eu saí da minha cidade, da minha comunidade foi no encontro dos Sem Terrinhas, do MST, aqui para Fortaleza, que é onde eu moro hoje, parecia coisa de outro mundo para mim, a primeira vez que eu vi o mar e eu lembro que todo mundo foi para a praia de Iracema, quando a onda veio todo mundo saiu correndo, parecia coisa de outro mundo, e eu voltei pensando: “é possível sim”.
Apesar de ter sido uma viagem relativamente pequena, para um menino, na época eu tinha 12 anos, fez toda a diferença, instigou a curiosidade e eu sempre fui essa pessoa de querer sair da minha comunidade, mas ser muito orgulhoso das minhas raízes e voltar sempre para continuar inspirando outros jovens, para contribuir com meus conhecimentos e que não seja um crescimento sozinho, a conquista nunca é no singular, é sempre no plural, porque tem todo uma comunidade que me criou, que me ensinou.
Eu venho de uma geração de agricultores, meus pais não chegaram a terminar o ensino fundamental, mas não foi por causa disso que eles deixaram de ser as grandes referência na minha vida, pelo contrário, eles sempre me ensinaram tudo que eu sei sobre respeito, sobre a importância da coletividade, de ser humilde, de valorizar as minhas raízes e mostrar que a educação é o caminho. Ela é o caminho.
Para quem vem de realidades como a minha, a educação é a porta, não tem outra. É estudando que a gente vai conseguir mudar a nossa realidade, mudar a realidade da minha família, da minha comunidade e de inspirar mais pessoas que vêm de contextos como o meu a transformar suas vidas também.

Qual o impacto da educação pública de qualidade na vida das pessoas e qual a importância de garanti-la?
É uma pergunta muito ampla, a gente poderia passar o dia todo falando sobre esse tema, mas eu destaco que a educação é o caminho. É através da educação pública, da escola, que todas as oportunidades que eu tive acesso no ensino fundamental, no meu ensino médio e que muitos estudantes, felizmente hoje, estão tendo cada vez mais acesso, que a gente consegue vislumbrar um futuro, ampliar nossos horizontes para além dos ambientes que a gente vive.
Eu escutei uma frase, uma vez, que marcou muito, “que a nossa visão de mundo é muito marcada de acordo com o ambiente que a gente vive”, dependente de onde seja, lá no sertão de Santa Quitéria, ou lá na periferia de Fortaleza, ou em qualquer outro contexto, ás vezes a gente não consegue enxergar muita coisa, porque é a referência que a gente tem, mas, felizmente a gente tem esse super poder, a gente tem todo esse apoio de políticas públicas que dão pra gente essa possibilidade de vislumbrar além, da gente ver que não é porquê eu nasci em uma comunidade rural do MST, que fica a 30km da sede da minha cidade, por exemplo, que eu não posso me formar no ensino superior, que eu não posso estudar nos Estados Unidos ou ser qualquer outra coisa que eu quero ser. Se você quiser ficar na sua comunidade e continuar para o resto da vida, ótimo também, que seja estudando, que seja contribuindo, que seja sendo uma liderança comunitária.
Você é do Assentamento da Reforma Agrária Roseli Nunes, em Santa Quitéria, no Ceará. Qual a influência das lutas do MST na sua vida?
Eu cresci nesse ambiente cercado por uma cultura de ativismo, de luta por emancipação social. Desde a minha infância isso é muito forte em mim porque, por exemplo, o meu assentamento, que é Roseli Nunes, popularmente conhecido como assentamento Pintada, leva o nome de Roseli Celeste Nunes, que é uma das grandes militantes e referências pela luta pela reforma Agrária no MST, e pelos direitos das mulheres, direitos humanos, e isso é uma coisa que a gente aprende desde criança, saber o contexto onde a gente está inserido e trazer isso para a nossa trajetória.
Então teve toda essa vivência de crescer cercado pela cultura do ativismo, por demandar que as nossas vozes sejam ouvidas e é uma coisa que eu carrego até hoje, meu trabalho de conclusão de curso foi sobre isso também e eu vou levar, com certeza, não importa onde eu vá, se é para os Estados Unidos, ou para o outro lado do mundo, mas sempre voltar para as minhas raízes e contribuir com o que eu vou aprender para ajudar a minha comunidade, para ajudar os jovens ao meu redor a crescerem também.
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