Dia 12 de maio, no Campo 4 do Monte Everest, a cerca de sete mil metros de altitude, a temperatura alcançou 30 graus centígrados. É o que conta o montanhista Pedro Hauck, guia de montanha, que lidera uma expedição que tenta alcançar o cume do Everest, de 8.848,86 metros de altitude. “Tivemos de tirar nossos casacos de proteção contra frio extremo”, relata Hauck. Eles não alcançaram o cume, precisaram descer, por conta de um vento forte que colocou em risco o grupo. Os montanhistas fazem uma nova tentativa ao longo desta semana.
O professor Jefferson Simões, PhD em Glaciologia, que participou de 29 viagens aos polos, observa que as geleiras polares perderam 30% de sua área e as geleiras não polares, como as da cordilheira dos Andes, por exemplo, perderam 40% de sua área, expondo pedras, gerando calor, provocando inundações no início do fenômeno, e agora escassez hídrica para as comunidades que vivem na base da montanha. E este é um fenômeno que também ocorre no Everest, a montanha mais alta do mundo.

O degelo no Monte Everest, resultado do aquecimento global impulsionado pela atividade humana, tem várias consequências significativas, incluindo a exposição de corpos de montanhistas que morreram tentando alcançar o cume, e a desestabilização das geleiras, como a Khumbu. O derretimento também contribui para a formação de lagoas e de fendas, como no glaciar de Khumbu, que os montanhistas precisam atravessar. O aumento da temperatura na região também está expondo o lixo deixado pelas expedições, antes cobertos por espessas camadas de neve e gelo.
Para o cientista Carlos Nobre, pesquisador titular da Universidade de São Paulo (USP), integrante da Academia Brasileira e da Academia Global de Ciência, “não estamos mais falando de mudança climática e sim de emergência climática”. Em recente evento na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), que discutiu o aquecimento global no âmbito das reflexões sobre a enchente gaúcha, Nobre alertou que a comunidade científica internacional estima que a temperatura subirá 2,5 graus centígrados até 2050, tornando a vida inviável em várias regiões, podendo levar a população a um ponto de não retorno. “Se não revertemos nosso modo de produzir e de consumir, na América do Sul a vida só será possível próxima à cordilheira dos Andes, por conta da umidade, o restante será um grande cerrado ou até mesmo um deserto.”
Derretimento da montanha

Cadê o gelo que estava aqui? Pergunta o montanhista brasileiro Pedro Hauck, 43 anos, a cada vez que lidera uma expedição em alta montanha. Nesta entrevista, feita com o auxílio de um aplicativo de mensagens, Hauck fala sobre sua experiência em alta montanha e as alterações climáticas que tem percebido em mais de duas décadas de escaladas.
Pedro Hauck, paulista de Itatiba, radicado há 18 anos em Curitiba, é geógrafo formado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), pós-graduado na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e guia de expedições de montanhismo. Ele já escalou 170 montanhas acima de 5 mil metros de altitude e em 2024 alcançou o cume do Aconcágua, na cordilheira dos Andes, a maior montanha do ocidente e do hemisfério Sul, com 6.961 metros de altitude. Agora ele está no Everest.
Nas fotos que Hauck publica em suas redes sociais é possível perceber o degelo das montanhas, com rochas expostas onde antes havia neve. “Eu sou uma testemunha das mudanças climáticas globais”, afirma o montanhista. Em 2002, na sua primeira experiência no Aconcágua, a montanha era totalmente diferente de hoje.
Ele conta que em fevereiro de 2002, “que é uma época em que o derretimento do gelo está mais avançado, mesmo assim eu escalava em gelo, isso na Plaza de Mulas, que é onde fica o acampamento base, a 4.300 metros de altitude. Atualmente, na Plaza de Mulas não tem nada de gelo. Zero gelo. Já escalei montanhas nos Andes cuja rota era pelo gelo, o gelo derreteu, como na montanha Rincon, com 5.590 metros de altitude. Era uma rota por uma canaleta de gelo e agora a escalada é em rocha pura. É muito perigoso, porque essas rochas estão soltas, elas estavam estáveis por conta do gelo, que funciona como cimento”.
As mudanças climáticas não são apenas alterações na temperatura. O clima é muito mais do que temperatura, o clima é precipitação, é vento, é irradiação. Todos esses elementos mudaram e nos Andes uma coisa que mudou muito é a precipitação, tem nevado cada vez menos, sem falar na temperatura que subiu muito. A média de temperatura no inverno nos Andes oscilava entre 14 graus centígrados negativos e zero. Mas, em 2023, alcançou 38,9 graus em pleno inverno.
As rotas técnicas, com gelo, estão desaparecendo, assim como todos os glaciares, agora estão surgindo as rochas soltas. As estações de esqui estão fechando porque não há mais gelo. A estação de esqui de Chacaltaya, na Bolívia, perto de La Paz, que era a estação mais alta do mundo, a 5.421 metros de altitude, fechou em 2009.
O montanhista Pedro Hauck conta que ministra um curso de alta montanha na Bolívia há algum tempo. São aulas práticas de técnica de escalada em gelo. “Há três anos eu levava o grupo até 4.900 metros de altitude para praticarmos a escalada em gelo. Não tem mais gelo nessa altitude. Agora nós precisamos subir até 5.300 metros para encontrar gelo e praticar a técnica. Abaixo dessa altitude é tudo rocha exposta ao sol e às variações climáticas”, afirma.
Recentemente, a estação de esqui Vallecitos, no cerro Cordon del Plata, a cerca de 5 mil metros de altitude, na Argentina, foi totalmente abandonada, não tem mais gelo. A estação de esqui de Penitentes, 4.350 metros de altitude, ao lado da Rota 7, que vai de Mendoza, na Argentina, a Santiago, no Chile, está parcialmente abandonada desde 2016 porque não é em todos os invernos que há neve suficiente para a prática do esporte.
Geleira tropical
O glaciólogo Jefferson Cardia Simões fala sobre as pesquisas realizadas nos Andes para avaliar o degelo nas montanhas. Especialista no tema, ele viaja ao Polo Sul desde os anos 1990 e também já esteve no Ártico e em outras regiões geladas do planeta. O trabalho consiste, basicamente, na realização de análises químicas da atmosfera e na coleta de testemunhos de gelo, que é uma espécie de paleontologia glacial, ou técnica palio climática.
O pesquisador coletou amostras na maior calota de gelo da América do Sul, a Quelccaya, no Peru, onde realizou perfurações de 120 metros, a 5.700 metros de altitude, para avaliar como se dá a circulação atmosférica na Amazônia e conhecer como era o clima antes dos portugueses e dos espanhóis chegarem à América. O Peru concentra 70% do gelo tropical do mundo.
O professor explica que esse trabalho é recente, começou em setembro de 2022 e deve trazer muito conhecimento à tona. Quelccaya é a maior geleira tropical do mundo, tem 17 km de extensão, uma área de 44 km quadrados e está apenas 5,1 km da cidade de Cusco, mas o acesso é muito difícil e exige preparo físico. A temperatura média na região é de zero grau. É um lugar muito procurado por praticantes de montanhismo. Desde 1978, Quelccaya perdeu 20% de seu tamanho, fenômeno que costuma ser citado por pesquisadores como um sinal das mudanças climáticas.
O derretimento do glaciar tanto pode ser consequência do aquecimento global como de alguma outra alteração climática, como a diminuição da precipitação de neve. Glaciólogos de outros países estudam Quelccaya desde 1970 e já perceberam um forte derretimento do glaciar e um consequente aumento do volume de água dos riachos locais, o que pode até provocar inundações no futuro.
Geleira, ou glaciar, é uma grande e espessa massa de gelo formada em camadas sucessivas de neve compactada e recristalizada, de várias épocas, em regiões onde a acumulação de neve é superior ao degelo.
Plantio em alta temperatura
Em 2017 foi realizada uma simulação de cultivo de grãos de milho em temperatura aumentada em 2,6 graus centígrados, em uma área de comunidades tradicionais do Peru. A experiência resultou na perda de toda a lavoura de milho. As plantas morreram queimadas ou atacadas por pragas que não estavam presentes em temperaturas mais amenas.
Na lavoura de batata o resultado foi semelhante. Cultivadas em altitudes mais baixas, com temperatura mais alta, mas ainda em solo tradicional, as batatas não se desenvolveram e a qualidade era tão baixa que não lograram valor de mercado.
Essas duas culturas são a base da alimentação das comunidades andinas e o impacto do aumento da temperatura na região coloca em risco o estilo de vida dessa população e de todo o ecossistema.
As simulações foram conduzidas pelo pesquisador Kenneth Feeley, do Departamento de Biologia da Universidade de Miami, EUA, em parceria com o biólogo Richard Tito, indígena da etnia quechua, nativo da região. O resultado do trabalho, “Global Climate Change Increases Risk of Crop Yield Losses and Food Insecurity in the Tropical Andes”, foi publicado na revista Global Change Biology e também pode ser encontrado na plataforma EcoDebate (ecodebate.com.br).
A enchente de maio
Em maio de 2024, o Rio Grande do Sul viveu sua terceira enchente em um ano. Mais de 870 mil pessoas foram impactadas, 420 municípios foram atingidos, do total de 497 existentes. No mês de maio, a média de chuva diária chegou a ser de 400 mm.
A chuva no mês de maio, em Porto Alegre, foi de 12 bilhões de metros cúbicos, ou 12 trilhões de litros. Essa quantidade de água equivale a quatro milhões de piscinas olímpicas. Para ajudar a entender esse volume, uma piscina olímpica tem 50 metros de comprimento, 25 de largura e três metros de profundidade. Os dados são do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), e o cálculo foi feito a partir de imagens de satélite.
A enchente aconteceu não só porque choveu muito, mas também porque um sistema de alta pressão fez com que as nuvens permanecem sobre o Rio Grande do Sul, os rios voadores – que são formados pela umidade da Amazônia, encontraram uma confluência que os fez migrar para o Sul, uma instabilidade climática entrou no estado pela Argentina e muitos equipamentos contra enchente estavam sem manutenção, além de várias edificações serem em áreas de risco ou em locais de aterro.
