No princípio era a mulher, as deusas e a cevada. Cabia às mulheres produzir o “líquido sagrado” que se tornaria popular no mundo. Com o tempo o protagonismo feminino nos processos de produção da cerveja foi se apagando, sufocado pelo machismo. Para jogar luz sobre a participação feminina no universo da cerveja no Rio Grande do Sul, um ambiente ainda predominantemente masculino, a comunicadora ana c, produziu o documentário Fermentadoras Mini Doc, que será exibido em uma sessão especial e única na Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, nesta quinta-feira (5), dia da Cerveja Brasileira. A sessão está agendada para iniciar às 19h30.
O projeto nasceu do desejo de ana c. de documentar a presença das mulheres no meio cervejeiro. “Eu sempre gostei de contar histórias de e sobre mulheres e percebi a necessidade de olhar para esse espaço. À medida que fui vendo que esses movimentos estavam começando a acontecer em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Senti vontade de contar essas histórias”, explica a diretora.
Com um histórico de narrar trajetórias femininas, ana viu no edital de cultura cervejeira de 2022 a oportunidade de viabilizar o documentário, captando recursos que, embora limitados – cerca de 10% do orçamento usual para produções de duração similar –, permitiram iniciar as gravações em 2023.

Além da falta de recursos, a produção enfrentou outros percalços, como a recente enchente que assolou o estado, forçando o adiamento da estreia originalmente prevista para julho de 2024. “Foram dois anos de trabalho por conta desse evento aí que a gente precisou (ser) solidária também durante a produção”, comenta ana., referindo-se ao impacto das cheias no cronograma.
O documentário apresenta sete mulheres que atuam em diversas frentes da cadeia produtiva da cerveja artesanal no Rio Grande do Sul, desde a fabricação até gestão, controle de qualidade, marketing e relacionamento com clientes. “A mulher cervejeira hoje, ela não é só a mulher que vai lá pra cozinha ou para a cervejaria e fabrica a cerveja. Existe uma série de trabalhos (…) invisibilizados”, destaca a diretora.
A intenção foi valorizar todas essas etapas, mostrando a amplitude da atuação feminina. Entre as participantes estão representantes das cervejarias Oripacha, Macuco, Cabocla Cervejas Artesanais, Cervejaria Rural Zapata e Sapatista, além da sommelier Bianca Telini. “Infelizmente, ou felizmente, não conseguimos ter todas as mulheres relevantes no documentário, pois existem muitas delas aqui no estado – e todas tem sua importância. Contudo, acredito que o grupo seja bem representativo. Assim, a gente pode pensar em fazer uma segunda edição e seguir contando essas histórias. “

ana c. ressalta a profunda ligação histórica entre mulheres e a produção de cerveja. “Na história, as mulheres que detinham o conhecimento do fazer cervejeiro, pois eram as mulheres que cuidavam das cozinhas, da preparação dos alimentos”, relata. Ela explica como símbolos associados à bruxaria – caldeirão, vassoura, chapéu pontudo e até o gato (para controle de roedores nos estoques de grãos) – eram, na verdade, ferramentas e sinais ligados à produção e venda de cerveja por mulheres. A vassoura na porta indicava cerveja disponível para venda. Esse comércio gerou independência financeira e poder para muitas mulheres, o que, segundo a diretora, levou à perseguição durante a Inquisição, com muitas sendo acusadas de bruxaria e sendo queimadas.
Resgatar esse protagonismo é fundamental, argumenta a diretora, para “dar o crédito correto da história” e “devolver às mulheres um poder que já era delas”. Ela acredita que dar visibilidade a essas trajetórias inspira outras mulheres a ingressarem no meio, contribuindo para um ambiente cervejeiro mais igualitário, acolhedor e com menos preconceito. “A partir do momento que a gente registra essa história, outras mulheres podem se inspirar, outras mulheres podem seguir os mesmos caminhos”, afirma.
A exibição na Cinemateca Capitólio (Rua Demétrio Ribeiro, 1085) no dia 5 de junho será uma oportunidade única para conhecer essas histórias. Com capacidade para 164 pessoas, a organização sugere chegar cedo. ana c. pede ao público que divulgue o documentário e compartilhe suas impressões. “É uma forma da gente também contar nossa história e é uma maneira também de ajudar o mundo a ficar um pouquinho melhor”, conclui.
A obra foi roteirizado, dirigida e produzida por ana c. Teve financiamento do Edital Fermenta! de Cultura Cervejeira da Ambev e também contou com recursos oriundos de financiamento coletivo para sua finalização. A produção é uma parceria entre a Santa de Casa Ateliê de Milagres – uma produtora independente de Porto Alegre que opera sob a ótica feminista, e a fuzzzlab.
