Embora o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), tenha feito declarações duras contra o genocídio israelense em Gaza, pouco se fez na direção de cortar a venda de produtos brasileiros que servem para atacar a população civil palestina e, mais recentemente, a iraniana. Dentre eles, o principal é o petróleo, usado em tanques e aviões israelenses, mas não o único.
“Genocídio premeditado”, disse Lula, ao qualificar a situação no território palestino, durante viagem à França. O assessor especial da Presidência, Celso Amorim, confirmou na semana passada a parlamentares que o Brasil está revisando os acordos com Israel, sobretudo em matéria militar, mas descartou, a princípio, o rompimento das relações diplomáticas e comerciais com Estado sionista, sob a justificativa de que a medida poderia prejudicar brasileiros que residem no país.
Bruno Huberman, professor de Relações Internacionais da PUC-SP, refuta esse argumento, embora reconheça que a assistência consular à população brasileira em Israel seria, de fato, um dos principais desafios. No entanto, sugere soluções práticas.
“Os brasileiros que normalmente utilizam serviços consulares em Tel Aviv poderiam passar a utilizar os serviços consulares destinados à embaixada brasileira para a Palestina”, disse o professor, lembrando que o Brasil já oferece serviços consulares em Ramallah, na Cisjordânia ocupada. “Se você tem serviços consulares em Ramallah e em Jerusalém oriental, que permite o fácil acesso para a população brasileira que mora no território, formalmente conhecido como Israel, penso que seria uma boa alternativa”, avalia Huberman.
Outro analista político e professor de relações internacionais, Bruno Lima Rocha acredita que a resistência do governo brasileiro em romper relações com o regime sionista, está relacionado à política doméstica.
“Ao contrário de outros momentos, como nas invasões do Líbano em 1982 e em 1985, na Guerra dos Seis Dias [1967], na guerra do Yom Kippur [1973], guerras árabes-israelenses ou de Israel contra o povo palestino, não havia no Brasil a combinação de regime democrático e base eleitoral sionista que agora tem. A bancada evangélica da Câmara, assim como a extrema direita ocidental no mundo hoje, é 100% pró-Israel. É uma nova configuração da extrema direita”, avalia Lima Rocha.
Ele considera que a postura brasileira é parecida com a posição dúbia de diversos países árabes que, nas últimas décadas, fortaleceram suas relações, sobretudo comerciais, com a entidade sionista. “Lula está fazendo exatamente o que os governos árabes e muçulmanos fazem. Como é que nós vamos cobrar de um governo civil ocidental latino-americano uma postura mais dura que a dos países árabes e muçulmanos?”, questiona o professor, que defende o rompimento das relações entre Brasil e Israel, pela dimensão moral de romper com um Estado genocida. Mas entende que o governo poderia tentar ao menos um congelamento, considerando sua posição declaratória.
Por sua vez, a sociedade civil organizada em movimentos populares, partidos políticos e coletivos de intelectuais, artistas e acadêmicos, pedem que o governo federal adote medidas de pressão para que Israel parece com o genocídio palestino. Entre elas, o cancelamento do comércio, sobretudo de petróleo, além do boicote aos produtos israelenses. Neste domingo (15), atos por todo o país pediram que o governo do presidente Lula rompa relações com o regime sionista.
Mas de que comércio estamos falando?
De acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), em 2024, o Brasil foi o 12º maior parceiro comercial de Israel, representando 2,1% do comércio do regime sionista, e o 2º maior parceiro do continente americano, perdendo apenas para os Estados Unidos.
No mesmo ano, o Brasil exportou a Israel US$ 725,1 milhões (quase R$ 4 bi) em produtos, alta de 9,5% em relação a 2023, e importou US$ 1.150,8 milhões (R$ 6,3 bi), queda de 14,9% em relação ao ano anterior. Mesmo com a redução no volume de importações e o aumento nas exportações, a relação comercial com Israel é historicamente deficitária para o Brasil, ficando em US$ 425,7 milhões (R$ 2,3 bi) o déficit comercial em 2024.

O principal produto exportado do Brasil ao regime israelense em 2024 foi o petróleo, que representou 30% do total das exportações brasileiras a Israel em 2024. Seguido da carne bovina (23%) e da soja (11%).

Por sua vez, Israel exporta ao Brasil agrotóxicos, adubos e fertilizantes químicos, que juntos, somam cerca de 44% das importações brasileiras desse país, além de aeronaves e componentes de aeronaves, que totalizaram 4,8% das exportações israelenses ao Brasil.

Os dados referentes ao período de janeiro a maio de 2025 confirmam a tendência de déficit, com um saldo negativo de US$ 308 milhões de dólares para o Brasil. Nesse período, as exportações brasileiras a Israel alcançaram os US$ 219 milhões de dólares, enquanto as importações somaram US$ 528 milhões.
Para a economista Diana Chaib, rompimentos comerciais sempre têm consequências econômicas, no entanto, os impactos variam conforme a dependência entre os países. “Israel é um parceiro importante, mas não central. Em 2024, ele representou apenas 0,4% das exportações totais brasileiras. Ou seja, o comércio com Israel é muito pequeno em termos proporcionais, e seu rompimento teria impacto limitado sobre a economia brasileira como um todo”, destaca Chaib, considerando ainda que o Brasil teria condições de buscar outros mercados para os produtos exportados a Israel, com relativa facilidade.
Já do lado israelense, acrescenta Chaib, “o Brasil foi o 12º maior parceiro comercial, com destaque para commodities essenciais como petróleo e alimentos. Isso indica uma dependência maior de Israel em relação a certas importações brasileiras”, avalia.
“O ponto que a gente precisa considerar é que o impacto direto seria mais político do que macroeconômico. Romper relações enviaria uma mensagem diplomática forte, alinhada aos princípios de direitos humanos e à pressão internacional por cessar-fogo. É uma decisão que ultrapassa a análise econômica tradicional, porque envolve valores, soberania e posicionamento geopolítico do Brasil no cenário internacional”, destaca a economista.
Cooperação militar
Além do comércio, o Brasil possui acordos de cooperação militar com o regime israelense. Em abril de 2022, o Congresso Nacional aprovou o Decreto Legislativo nº 12, ratificando o acordo realizado entre o governo do então presidente Jair Bolsonaro (PL) e o governo do Estado de Israel sobre cooperação em questões relacionadas à Defesa, assinado em Jerusalém, em 31 de março de 2019.
O acordo prevê a colaboração mútua em matéria de cumprimento das leis contra o crime organizado e outros crimes severos, prevenção de ilícitos, investigação e inteligência policial, segurança cidadã, deveres policiais especializados, inteligência policial, segurança no uso da tecnologia da informação e comunicações, entre outras.
Outras parcerias foram firmadas pelo ex-presidente Bolsonaro com Israel, entre eles, acordo para cooperação em segurança pública, prevenção e combate ao crime organizado, proteção de informações classificadas, intercâmbio de dados pessoais de seus cidadãos, e outro para a cooperação mútua em serviços aéreos, que permite, por exemplo, que empresas aéreas dos dois países possam sobrevoar o espaço aéreo sem pousar.
A reportagem entrou em contato com os ministérios da Defesa e das Relações Exteriores e os questionou sobre o status desses acordos e da relação entre os dois países. O Itamaraty se limitou a enviar o link com a relação de acordos firmados, sem responder aos demais questionamentos. O Ministério da Defesa não retornou.
Diplomacia estremecida
Em maio de 2024, o presidente Lula removeu o embaixador Frederico Meyer de Tel Aviv. A decisão ocorreu após o ministro das Relações Exteriores israelense, Israel Katz, ter declarado o chefe de Estado brasileiro persona non grata em Israel.
A crise diplomática começou após o presidente Lula fazer declarações públicas contra as operações militares de Israel em Gaza, comparando-as às barbaridades realizadas pelo governo de Adolf Hitler na Alemanha nazista. Em seguida, o chanceler israelense levou o embaixador brasileiro a um evento no Museu do Holocausto, sem aviso prévio, na qual, em hebraico, fez críticas ao presidente brasileiro, provocando um constrangimento público ao diplomata do Brasil.

Desde então, Meyer foi transferido para o cargo de representante do Brasil na Conferência do Desarmamento, em Genebra, enquanto a representação diplomática em Israel segue sem embaixador. Em conversa com parlamentares na quarta-feira (11), o ex-ministro Celso Amorim qualificou a retirada de Meyer de Tel Aviv como uma mensagem “dramática” do ponto de vista diplomático.