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A coluna Cidade das Letras: literatura e educação é mantida por Luciano Mendes de Faria Filho, que é pedagogo, doutor em Educação e professor  da UFMG, e por Natália Gil, que é pedagoga,  doutora e...ver mais

Crônicas de viagem III: guias

Guias são pessoas visionárias

Por Luciano Mendes

Diz o dicionário que existem mais de 20 significados para a palavra “guia”. E eles transitam de livros a bebidas, passando por entidades espirituais e pelos do bigode, até chegar àquele que quero aqui enfatizar: “Pessoa que acompanha e dá informações locais a visitantes, viajantes e turistas”.

Eu, sempre que penso em guia, me lembro de livros, filmes e histórias em que as pessoas que desempenham este papel e profissão, são aquelas que conhecem o território e, além disso, sabem interpretar pistas e sinais nos terrenos e dos tempos. Visionárias é que são, sempre pensei.

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Antes de partirmos para a Chapada Diamantina já sabíamos, por informações de origem variadas, que para um bom passeio por aquelas paragens seria indispensável a companhia de uma pessoa que nos guiasse. E descobrimos mais lá: lugares há que não se acessa sem a presença dessas pessoas. Assim, munidos desta informação prévia, já chegamos a Rio de Contas com o guia contratado.

O Lé, foi assim que ele sempre se apresentou pra gente, é pessoa que conhece o terreno. Menino jovem, nos contou histórias daquelas paragens de ontem e de hoje. Do mundo natural ao sobrenatural ele ia nos guiando, dizendo das formações urbanas, dos caminhos e paragens de pessoas escravizadas que fugiram, formaram quilombos e resistiram às violências várias do colonizador. Das curvas dos rios, das nascentes e da “primeira cidade planejada do Brasil” (Rio de Contas), ele entendia bem. 

Foi também o Lé que reforçou para nós uma informação que já pairava nos outros guias – livros e sites: a de que não poderíamos passar por aqueles cantos sem conhecer a Cachoeira do Buracão, em Ibicoara. E, mais ainda: que já tinha uma pessoa para nos guiar por lá! Então, atendendo às indicações e ao comichão da curiosidade, partimos para Ibicoara, que não estava no roteiro. A precisão do viajar é perder-se no caminho!

Sol

Foi em Ibicoara que conhecemos a Sol, nossa guia até a Cachoeira do Buracão. Pedagoga, professora licenciada, até há pouco tempo conjugava o trabalho de guia com a docência no ensino fundamental. Agora, dedica-se exclusivamente às andanças pelos territórios de Ibicoara e adjacências. Foi com ela que fizemos a mais demorada, e emocionante, viagem dentro da viagem.

O caminho até a Cachoeira do Buracão não era longo – uns 45 minutos andando em terreno plano. No entanto, demoramos quase duas horas no trajeto: a cada momento Sol nos iluminava com conhecimentos variados sobre os rios e sobre a flora da região. Foi ela que nos ensinou a ouvir os sons da água dentro do xique-xique. Simples e impactante experiência para três sexagenários!

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Na cachoeira, o enfrentamento dos medos vários. Da altura a ter que atravessar 140 metros de cânion dentro d’água, tudo aventuroso. Mas lá fomos nós. E até que nos saímos muito bem, pelo menos na avaliação de nossa pedagoga, guia não mais de crianças pelos caminhos do saber, mas, agora, de adultos pelos caminhos de redescoberta do mundo!

Guido

“Ôh Guido, você que é daqui de Mucugê, você conhece todo mundo aqui?”, pergunta um de nós. Ao que ele responde: “Eu não, eles é que me conhecem!”. Este foi, mais ou menos, o cartão de visitas do intrépido  guia que a Sol nos indicou na cidade baiana. De carro ou caminhando, Guido nos contou histórias tantas daqueles vastos territórios da Chapada. Chegou mesmo a quase nos convencer a abandonar tudo e partir, sem mais, para o Vale do Pati, o lugar “marlindo” do mundo! Foi difícil resistir aos mundos que, maravilhado e crítico, ele ia nos apresentando.

O Rio Paraguaçu, personagem da nossa Crônica de Viagem da semana passada, é  o grande protagonista de várias histórias contadas por Guido. E foi como um lamento, que se tornou também o nosso, que ele nos ensinou sobre os roteiros navegáveis do rio, desde tempos imemoriais, até ele ter sido tomado pelos rejeitos da exploração predatória do ouro e do diamante na região da Chapada. Guido contava histórias, suas histórias, ao mesmo tempo que fazia, como ninguém mais, uma contínua reverência às árvores, aos rios, aos animais.

Rael

Já em Lençóis, quem nos guiou foi o Rael, o “Gustavo Lima da Chapada”, como ele mesmo nos confidenciou. Formado em matemática, com Trabalho de Conclusão de Curso sobre a etnomatemática, Rael foi aprovado, há alguns anos, num mestrado em Educação Matemática, mas acabou desistindo para se dedicar à guiagem pela Chapada.

Alegre e com admiradoras por todos os lugares por onde passamos, nosso guia nos levou ao fundo de uma caverna, com a experiência do escuro “total”. Numa delas em companhia de Thamiles, uma jovem estudante de educação física que pôde conhecer in loco duas das referências bibliográficas da área e receber vibrantes conselhos sobre as suas possíveis escolhas acadêmicas. E eu só ouvindo, e rindo! Ah! esses viajantes-professores-viajantes!

Histórias tantas

Companhia, conhecimentos, territórios dados a conhecer, histórias muitas de si, do mundo e das populações humanas e não humanas que nele habitam.

Leitores de livros que somos, os três viajantes, adentravam por caminhos muitos e, às vezes, re-lembraram histórias tantas que em nós navegam tendo a memória por guia.

Guias memoráveis tivemos na Chapada. Que continuem a ensinar SERtões e a conhecer veredas, como bem fez aquele moço lá de nossa primeira paragem, a boa e bela cidade do coração das Minas e dos Gerais, o grande Guimarães Rosa.

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

Leia outras crônicas e artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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