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O direito à cidade de imigrantes: do acesso a serviços à produção do espaço urbano

Devido às barreiras adicionais ligadas ao fato de serem os “estrangeiros”, o cenário para aqueles que migram é crítico para o acesso à saúde

Por Luiza Brazuna

As imigrações e emigrações, historicamente, sempre fizeram e ainda fazem parte do cenário global. Ao longo da última década, o aumento exponencial dos fluxos migratórios e sua crescente diversificação têm levado os Estados a encarar novos desafios e, portanto, novas responsabilidades. Todas essas responsabilidades dizem respeito à mesma questão: como garantir os direitos fundamentais daqueles que migram?

Diante desse leque de direitos, tendo em vista um mundo cada vez mais urbano e globalizado, o direito à cidade é essencial. Esse, que começou como um conceito, tornou-se lei com a aprovação do Estatuto da Cidade na virada do século. Isso significa(ria) que todos os habitantes de uma localidade têm o direito de habitá-la, integrá-la, usufruir de seus serviços e participar ativamente da produção do espaço urbano – inclusive seus imigrantes.

Contudo, o que era para servir como uma garantia da universalidade do direito de pertencimento, acabou evidenciando profundas desigualdades. Os diferentes grupos residentes em uma cidade não a vivenciam da mesma forma, de modo que alguns pertencem a ela e outros não. No caso dos imigrantes, este problema é acentuado devido a barreiras linguísticas, culturais e sociais.

Nesse contexto, é central, na literatura sobre o tema da imigração, a discussão acerca da falta de oportunidades de trabalho e a problemática relação entre as pessoas que migram e a informalidade. Por outro lado, outra face importante do direito à cidade é a garantia do acesso a serviços públicos, em que destaco, aqui, a saúde.

É claro que os imigrantes lidam com os desafios de saúde que os nativos brasileiros também enfrentam, como superlotação, longas filas de espera, falta de médicos especialistas, escassez de medicamentos e precariedade do serviço em pontos específicos do país. Contudo, devido às tais barreiras adicionais ligadas ao fato de serem os “estrangeiros”, o cenário para aqueles que migram é ainda mais crítico. Imigrantes de diversas nacionalidades e também os apátridas têm lidado com a má formação dos servidores públicos acerca dos direitos migratórios; o desconhecimento completo sobre o modo de funcionamento do SUS devido à falta de orientação; a exclusão dos serviços de saúde preventiva; e a dificuldade com o idioma e insensibilidade por parte dos profissionais de saúde quanto a questões culturais e religiosas que não as brasileiras. Sobre a dimensão psicológica, frente a problemas tão elementares – e por ora vistos como “mais urgentes” –, essa é absolutamente secundarizada e minimizada.

Em entrevista ao Outra Saúde, uma funcionária do Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes de São Paulo (Crai) – chamada ficcionalmente de Joana – destaca dois dos pontos mencionados, que, muitas vezes, andam juntos: o desconhecimento completo sobre o modo de funcionamento do SUS por parte dos imigrantes e sua exclusão de alguns serviços, sobretudo referentes a atenção primária e saúde preventiva. 

De acordo com Joana, “a forma como cada população vê a saúde é diferente, então, para alguns lugares, a saúde não é preventiva e você não precisa ter um acompanhamento sem estar doente. Isso é um choque para muitos imigrantes que chegam ao Brasil, que tem uma visão de saúde que é preventiva. A pessoa tem que começar tudo de novo, e é um pouco angustiante, eu imagino, ter que começar um diagnóstico do zero”.

Além das barreiras culturais – inclusive na forma de ver saúde –, há, também, barreiras linguísticas. Segundo a funcionária do centro, há relatos de imigrantes que, sem saber falar português e desesperados por atendimento, ficam parados na frente das UBSs, esperando alguém entrar em contato.

Tanto a questão comunicacional quanto a do preconceito dizem respeito ao mau preparo dos servidores públicos com relação às populações imigrantes. Joana lembrou que, muitas vezes, os profissionais de saúde não querem atender a um certo grupo porque há estigmas de que “em certo lugar a saúde é mesmo negligenciada” ou porque “de onde vieram eles são tratados assim”. Esses relatos são frequentemente trazidos não só pelos imigrantes, mas também pelas próprias equipes técnicas dos serviços de saúde. Entende-se, portanto, que o problema de acesso à saúde pelos imigrantes passa, necessariamente, pela promoção de acesso à população imigrante pelo próprio sistema de saúde.

O tema da saúde dos imigrantes transcende a questão do tratamento versus prevenção; ele diz respeito a uma gama de situações que vão desde serviços de cuidado até a promoção de acessibilidade linguística, cultural e material. Se, como afirmam agências globais de saúde – como a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) –, as migrações constituem um dos determinantes da saúde global, devemos agir em relação a este desafio, sobretudo em um contexto em que caminhamos para um número cada vez maior de populações migrantes mundo afora. Para isso, discutir a tanto a saúde pública a partir desse recorte, como discutir a questão da saúde dos imigrantes na literatura sobre o tema, é urgente.

Por outro lado, também se pode perceber que a questão da saúde atravessa a garantia não só do acesso desses imigrantes a serviços públicos, mas ao próprio espaço urbano. Mesmo constituindo uma face do direito à cidade – e talvez a mais “palpável”, materialmente falando –, este último pode ser interpretado não somente como um direito de usufruir de serviços oferecidos pela cidade, mas também como direito a produzir territorialidades urbanas moldadas a partir dos próprios referenciais – étnicos, culturais e axiológicos (cf. Magalhães, Bógus, Baeninger; Heil; Ramírez Sarabia).

Neste sentido, a ocupação dos espaços públicos – e de espaços de acesso público – é instrumento fundamental para a reivindicação de novas formas de construção e de vivência no espaço urbano, sendo nesses espaços onde os excluídos do processo de planejamento e construção das cidades, como os imigrantes, produzem democraticamente o direito à cidade – conceitual e praticamente. É justamente dentro dessa conjuntura em que se destaca a importância de experiências locais como o Crai.

Nomeado de Oriana Jara – importante imigrante chilena que dedicou sua vida à militância pela pauta do direito ao migrante –, o Crai é um equipamento público ligado à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania que oferece apoio especializado aos imigrantes residentes em São Paulo. Criado em 2014 pela prefeitura, na gestão de Fernando Haddad (PT), o centro oferece diversos serviços, como regularização migratória, acesso a programas e direitos sociais, atendimento jurídico, aulas de português, entre outros.

O fato de o Crai ser não só pioneiro, mas ainda o único serviço público de atendimento aos imigrantes para São Paulo – cidade que abriga mais de 360 mil deles – é sintomático. É preciso que haja articulação entre políticas públicas municipais para a população imigrante e políticas públicas nacionais para o mesmo grupo; para isso, é necessário que existam, de fato, programas nacionais que atendam especificamente a este grupo, uma vez que, como vimos, os problemas estão longe de ser os mesmos.

Resolver os desafios que tangem à pauta migratória, bem como garantir que os imigrantes tenham condição de produzir e reivindicar o direito à cidade, não diz respeito, somente, a enfrentar barreiras sociais, culturais e linguísticas para acessar serviços públicos como os de saúde. É preciso ir além e derrubar as fronteiras que limitam nosso próprio sistema e cultura políticos. 

*Pesquisadora-colaboradora do Observatório das Metrópoles Núcleo São Paulo

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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