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‘Manter relações com Israel é ser conivente com o genocídio palestino’ – Visões Populares entrevista

Giovani del Prete, da Alba Movimentos, explica o histórico da região e os desdobramentos possíveis da escalada

O conflito histórico no Oriente Médio ganhou um novo capítulo com os recentes ataques israelenses contra o Irã, que começaram no dia 13 de junho. A justificativa mobilizada por Israel é o programa nuclear do Estado iraniano, que recentemente também atacou bases estadunidenses no Qatar, como resposta à ofensiva norte-americana e israelense. 

Ao mesmo tempo, Israel segue perpetrando o genocídio do povo palestino, que se intensificou desde outubro de 2023 e já resultou na morte de mais de 55 mil pessoas, incluindo crianças, mulheres e idosos. 

Há mais ou menos 80 anos não vemos uma guerra nas proporções que Israel está provocando e mobilizando

O território palestino enfrenta ainda um bloqueio que impede a entrada de alimento, água, remédios e itens básicos de higiene. A única “ajuda humanitária” permitida é distribuída por Israel e Estados Unidos, mas tem sido comum o fuzilamento de multidões de pessoas desesperadas pela fome. 

Diante de um cenário complexo, com a possibilidade de escalada do conflito regional para um embate global, o Visões Populares entrevistou Giovani del Prete, militante do Movimento Brasil Popular e integrante da secretaria continental da Alba Movimentos, que é uma articulação internacional de organizações da América Latina e do Caribe com objetivo de fortalecer a relação entre os trabalhadores latino-americanos e caribenhos. 

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Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato MG – Como você enxerga o conflito entre Israel e Irã? De que forma os embates políticos e militares mais recentes na região se interligam a essa guerra? 

Giovani del Prete – Israel está conectado, neste exato momento, a guerras, além da Palestina, com o Irã, a Síria, o Líbano e o Iêmen. São várias frentes de guerras abertas ao mesmo tempo e isso significa que o país tem responsabilidade por escalar a violência para um conflito regional. 

Há mais ou menos 80 anos não vemos uma guerra nas proporções que Israel está provocando e mobilizando sob o argumento de “legítima defesa”. No caso do programa nuclear iraniano, não é diferente. É em “legítima defesa” que eles atacam primeiro, para supostamente poder se defender de uma possível arma. Mas não provam que existe essa arma. 

Da mesma forma, eles se mobilizam para fazer o genocídio na Palestina. Mais de 55 mil palestinos foram assassinados em menos de dois anos e 70% são mulheres e crianças. A Palestina nem exército tem. Que legítima defesa é essa? Nos outros países, usam o mesmo argumento. Que legítima defesa é essa que ataca primeiro a quem não oferece risco?  Israel precisa parar, mas não vai fazer isso por conta própria.  

Benjamin Netanyahu é criminoso de guerra

Nosso trabalho, de quem se preocupa com o povo trabalhador de qualquer parte do mundo, é desnudar essa carnificina na Palestina.  Israel não pode se esconder no argumento de legítima defesa para justificar o colonialismo, o racismo, o massacre e o genocídio de crianças e mulheres.

O próprio Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, tem mandato de prisão do Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade. Como o Tribunal Penal Internacional é um organismo internacional, ele não tem força de lei nos países. Mas todos os 124 países que são signatários desse acordo, devem prendê-lo, caso Benjamin Netanyahu viaje para lá. Ele é considerado um criminoso de guerra.

Qualquer evento relacionado a Israel tem um ponto de partida na própria criação do Estado de Israel, que significou a partilha da Palestina. É exatamente como os portugueses fizeram no Brasil com os nossos indígenas. Não chegaram aqui e descobriram o Brasil vazio. Existia muita gente, uma diversidade toda, que, a partir de 1500, foi massacrada por um projeto colonialista. 

O que vemos hoje na Palestina, com a fundação do Estado de Israel, nasce de um projeto colonialista. Esse é mais um capítulo dessa história. A diferença, agora, para outros momentos é que o caso está superando recordes nefastos. 

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Desde a Segunda Guerra Mundial, não vemos uma regionalização do conflito. E essa regionalização tem um país como protagonista. Israel, com o seu projeto colonialista e racista tem provocado a desestabilização da região para manter os interesses da extrema direita, capitaneada por Benjamin Netanyahu.  

Ele tem usado da guerra para se mostrar como um homem forte, que não tem medo de enfrentar os inimigos e, assim, ganhar poder às custas de sangue e destruição de outros povos. 

Como é a situação da Palestina hoje? O conflito com o Irã pode alterar a situação no território?

São mais de 80 anos desse projeto colonialista e, até agora, Israel não conseguiu cumprir seu objetivo final. Estamos falando, portanto, de 80 anos de resistência de todo um povo. Estamos na terceira geração de famílias inteiras que resistem às agressões israelenses. 

Israel é, na região, uma das principais potências econômicas e militares, ao lado do Irã. Eles são muito próximos em potência bélica, embora com diferentes números de soldados, de marinha, de aeronaves, de navios, etc. Além disso, Israel é bem menor do que o Irã e, por isso, o Irã tem no seu desenvolvimento militar o conhecimento de um terreno mais alargado, mais extenso.

Israel recebe ainda um enfrentamento dos países árabes.  Como as violências de Israel na região são muito comuns e históricas, existem pressões de países como Egito, Argélia, Iraque e Irã para não normalizar as relações com Israel.  Qualquer um que faz negócio com Israel, de alguma maneira, está contribuindo para o fortalecimento dessa estratégia colonizadora e racista de desestabilização da região. 

O papel que o Irã joga na relação com Israel é um contraponto, já que Israel é como um funcionário, um braço, uma ramificação dos interesses dos Estados Unidos no Oriente Médio. 

Os Estados Unidos são o país que mais consome petróleo no mundo e sabemos que onde tem petróleo os Estados Unidos estão metidos em  guerra. Israel sempre funcionou como um porta-aviões dos Estados Unidos naquela região, para garantir o abastecimento de petróleo. É uma região estratégica econômica e militarmente.

Nesse cenário, Israel e Irã são duas potências regionais completamente diferentes politicamente. Israel tem relação direta com os Estados Unidos. Já o Irã, desde 1979,  a partir da revolução, expulsou o último aliado dos Estados Unidos. Desde então, o Irã é inimigo dos Estados Unidos e é tido, principalmente depois dos ataques às Torres Gêmeas, como um país do “eixo do mal”.

Por outro lado, existe muita resistência a essa desestabilização que Israel promove na região. Em decorrência disso, foram criadas, ao longo do tempo, nos países árabes, milícias armadas que sofrem a influência do Irã, como o Hezbolá, no caso do Líbano, e também o Hamas.

Essas milícias, tidas como terroristas pelos Estados Unidos, são, na verdade, braços armados da resistência anti-sionista, anti-violência de Israel na região. 

Temos que ter a dimensão de que qualquer grupo armado vai ter bandas que não prestam. É assim nos exércitos nacionais. No Exército da Venezuela, você vai encontrar figuras que não prestam. No Exército brasileiro, você vai encontrar figuras que não prestam. Mas, em geral, o que orienta politicamente a criação dessa resistência armada são as agressões de Israel. 

No enfrentamento ao Irã, nas últimas etapas, Israel primeiro foi atacando o Hamas, depois o Hezbollah. Isso significa que, hoje, o Irã tem menos apoio internacional armado. 

Líderes do G7 emitiram uma declaração conjunta apoiando o “direito de Israel de se defender”. Qual é a chance de esse conflito escalar para uma questão mundial? 

Rússia, China e índia, por exemplo, têm chamado primeiro ao diálogo. A China e a Rússia foram mais diretas em dizer que o ato de Israel ao atacar o Irã é de desestabilização regional e pedir um cessar fogo. Agora, os países do G7 — Estados Unidos, França, Reino Unido, Japão, Alemanha e Itália  — já se colocaram do lado de Israel.

Existe uma busca, sobretudo dos chineses, dos russos e do Brasil, chamando ao diálogo. Não é interessante para a China e nem para a Rússia entrarem em uma guerra. Já são cinco países que Israel está atacando neste momento.

O passo seguinte seria o envolvimento direto dessas grandes potências, que até agora, de maneira direta, não estão envolvidas. Quem está mais envolvido são os Estados Unidos, que também já atacou o Irã. 

Israel e Estados Unidos sujam as mãos de sangue

Eu espero que consigamos entrar em um período de diálogo, mas acho cada vez mais difícil existir um encerramento pela via pacífica, porque já vivemos, desde outubro de 2023, essa escalada de agressão. Se não houver uma queda do atual primeiro-ministro, não vejo nenhum cenário possível em que Israel vá ceder.

O grupo que manda hoje em Israel só dá declarações dizendo que vão até o fim na guerra. E ir até o fim é expulsar todo o povo palestino de Gaza, e todas essas movimentações que eles estão fazendo, é fazer guerra. 

“Ir até o fim” é derrotar a resistência anti-imperialista e anti-sionista no Iêmen, no Líbano e na Síria. Ou seja, é um projeto de poder, no sentido mais nefasto da palavra, que tem a ver com ocupação militar, guerra e massacres. 

Espero que o Sul Global, que sempre tem chamado pela paz, consiga costurar diálogos. Mas está cada vez mais improvável, considerando a postura de Israel em não ceder.

Os ataques de Israel ao Irã atrapalharam as negociações de um acordo de não proliferação nuclear que estava em curso entre os EUA e o Irã? 

No governo Obama, nos Estados Unidos, foi assinado um acordo sobre o enriquecimento de urânio no Irã, que previa  regular o programa nuclear iraniano para que o mundo tivesse certeza de que não era para fins militares, mas sim para fins médicos e de produção de energia. 

Qualquer país pode ter usinas nucleares. A questão é o quanto você enriquece o urânio. Se você usa no nível mais baixo, ele serve de energia elétrica e para materiais médicos. Agora, para você fazer uma bomba com urânio, você tem que enriquecer acima dos 80% ou 90%. O acordo previa um limite no quanto o Irã poderia enriquecer o urânio. 

Mas o extremismo dos Estados Unidos alimenta e financia o extremismo de Israel. A partir do extremismo, o Trump, quando assume em seu primeiro governo, rasga esse acordo. Essa foi uma primeira sabotagem contra a paz com o programa nuclear iraniano. 

Agora, com o ataque recente ao Irã, que abre essa nova escalada entre os dois países, Israel matou os principais comandantes da Guarda Revolucionária do Irã e os principais cientistas nucleares iranianos. Entre esses cientistas, estava o negociador, pela parte iraniana, no acordo que estava em negociação atualmente. Ou seja, Israel assassinou o negociador iraniano do novo acordo.

Além disso, Israel não é signatário do tratado de não proliferação de armas nucleares e não se compromete internacionalmente em dizer que não tem armas nucleares. O Irã é signatário desse acordo. 

No Brasil, mobilizações expressam a solidáriedade ao povo palestino e pedem o fim das relações diplomáticas com Israel. Como você avalia essas movimentações? 

Temos que ter dois objetivos principais na solidariedade internacional. O primeiro é denunciar o inimigo, quem está sendo responsável pela matança, que, nesse caso, é o projeto colonial e racista de Israel. O inimigo é o sionismo, o setor da extrema direita israelense supremacista e racista. 

Denunciar é dizer quem é o culpado em todos os lugares que a gente possa. Na conversa com os amigos, nos meios de comunicação, com deputados, figuras públicas, artistas, etc. 

A segunda mensagem importante é visibilizar a resistência do povo palestino. É essencial celebrar essa resistência, não para romantizar. É muito duro passar por um genocídio. Ninguém deseja isso. Não tem nada de romântico. Mas a gente tem que celebrar que esse é um povo que insiste em defender o seu direito à soberania, à dignidade, e ao retorno ao território. É o direito de todo e qualquer povo: terra, teto e trabalho. 

Por isso, os palestinos estão lutando há 80 anos. É ao lado desse povo que temos que celebrar a resistência. É também uma tarefa que precisa de coragem, porque quando falamos com os amigos, nos meios de comunicação, recebemos muitas críticas, inclusive ameaças. 

Projeto de Israel na Palestina é colonialista e racista

A extrema direita, que concorda com Israel, é violenta. No Brasil, essa turma tentou dar um golpe de Estado, planejou matar o Lula. Com a pandemia, Bolsonaro chegou a 700 mil mortes. Eles têm coragem e, por isso, temos que ter mais coragem ainda de denunciar e pressionar, desgastar, envergonhar Israel e Estados Unidos por sujarem suas mãos com sangue na guerra. 

Toda e qualquer ação é importante. Uma marcha nas ruas, mostrar o apoio público, que existe uma mobilização da sociedade brasileira sobre esses temas. 

No Brasil, fizemos no dia 15 de junho a Marcha Global para Gaza. No mundo inteiro, tivemos essa marcha. 50 mil pessoas saíram do Egito e foram caminhando até Gaza, na Palestina, para furar o bloqueio econômico e humanitário e levar comida e remédio para os palestinos. 

Em São Paulo, reunimos 30 mil pessoas, chamando atenção para que Lula rompa relações com Israel já, porque qualquer país que coopera e faz negócio com Israel, nessa conjuntura, está fazendo Israel lucrar com o nosso dinheiro, para matar palestino, para ser colonialista, para ser racista.

Se a gente resiste junto ao povo palestino, eles recebem essa nossa solidariedade, ficam muito felizes, se sentem abraçados. Isso eleva a moral da tropa. A solidariedade faz eles ficarem confiantes. 

O povo brasileiro não está muito distante dessa luta. O equipamento das polícias militares brasileiras vem de Israel. Tivemos recentemente um despejo muito forte na favela do Moinho, em São Paulo, e foram usados equipamentos de Israel.

Não é só sobre os palestinos, é sobre nós, como povo trabalhador que resiste a essas opressões cotidianas. 

A mídia tradicional segue demonstrando uma postura condescendente com as inúmeras violações de Israel aos direitos humanos. Como você avalia isso?

Os grandes jornais internacionais, de donos ou de Israel ou dos Estados Unidos, criminalizam e transformam em terrorista todo e qualquer militante do Hamas, do Hezbollah ou dos Hutis, por exemplo. 

No mundo, em geral, temos um momento de desestabilização na ordem internacional, que já não reflete mais a correlação de forças real. Nos últimos 80 anos, muita coisa mudou, mas a estrutura de poder segue respondendo a uma lógica política velha, que já está inadequada e não corresponde mais aos países que têm condição de dar alguma estabilidade ao mundo. 

Por outro lado, países sobretudo do Sul Global, como os que compõem o BRICS, são potências regionais e, no caso da Rússia e da China, são potências globais. Isso mostra como é velha a estrutura da ordem internacional, o que resulta em um período de desestabilização. 

Quem tem formalmente o poder não tem tanto poder quanto tinha antes e, hoje, sofre mais resistência e retaliação.  Por exemplo, os Estados Unidos tiveram que fugir do Afeganistão. A gente viu o Talibã retomando o Afeganistão, com toda a tragédia que foi. 

Com isso, fica tudo chacoalhado. Qualquer conflito que aconteça regionalmente tem capacidade de explodir internacionalmente e ter consequências maiores. Isso porque não temos um sistema bem organizado de estabilidade mundial. 

O Irã se relaciona a essa mesma lógica. Historicamente, é um dos grandes produtores de petróleo e gás, o que alimenta a economia iraniana. É uma potência regional, do ponto de vista militar e estratégico, seja pela sua posição geográfica, seja pelo seu poder militar. 

E o Irã tem, desde 1979, uma revolução de maioria xiita, o que difere muito de outros países árabes (a maioria dos países são sunitas), e uma modernização conservadora pela qual o país passou. Olhamos para as políticas no Irã, às vezes, com muito preconceito, sem entender as questões culturais do país.

O Irã tem uma sociedade viva, um povo em resistência, em luta. Tem as suas contradições, com o regime conservador, é real. Mas também, de maneira regional e global, representa um pólo de resistência à dominação dos Estados Unidos e de Israel no mundo. Quando vamos para o cálculo do poder global, na vida real da política internacional, o Irã cumpre um papel fundamental para a paz global. 

Para você, como tem sido a postura do presidente Lula e do Itamaraty frente a escalada do conflito no Oriente Médio? 

A postura do presidente que Lula, considerando a média global, tem sido acima da média. Ele classifica como genocídio os ataques e as agressões de Israel ao povo palestino, por exemplo. Isso ajuda a mobilizar a opinião pública. Visibilizar, porém, não é suficiente. É preciso boicote.  

Temos que boicotar, sancionar e causar um processo de desinvestimento em Israel. Isolar o país, causar um impacto no bolso de Israel. Só com um impacto econômico é possível parar essa matança. 

O que a gente precisa mesmo é do rompimento de relações. Por isso, em cada país do mundo, essa é a pauta internacional do movimento de solidariedade com a Palestina: pressionar os seus governos para que rompam relações com Israel. 

Não é só o governo nacional. Podemos pressionar também o governo estadual, o governo municipal, as universidades brasileiras, as empresas públicas, etc. Existem várias frentes em que podemos trabalhar para cortar contratos. Para o Brasil não significaria nada cortar relações com Israel, do ponto de vista econômico. 

Para Israel, o contrário é verdadeiro, porque o Brasil é um dos seus principais aliados comerciais. Então, o Lula tem que romper relações. Se ele está dizendo que é genocídio, enquanto ele não rompe relações, ele está colaborando com esse genocídio. Hoje em dia, não tem meio termo. O país que não rompeu relações é conivente.

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