APATIA, “Condição emocional que se caracteriza pela insensibilidade e indiferença; insensibilidade.” In: MICHAELIS. Dicionário da Língua Portuguesa. Editora: Melhoramentos. Disponível em: [https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/apatia]. Acesso em: 11 de junho de 2025.
Mudanças climáticas, algoritmos controladores, inteligências artificiais, guerras tomando continentes, fome, desigualdade social, racial e de gênero, ameaças totalitaristas, ditaduras eclodindo e encontrando apoiadores no mundo todo. O que está acontecendo com a nossa geração? Por que será que não reagimos aos conflitos que implicarão diretamente em nosso futuro? Somos fracos? Somos vítimas? Somos simplesmente máquinas programadas para aceitar o que nos é imposto? Muitas dessas questões vêm ganhando espaço nos ambientes acadêmicos, e na sociedade como um todo ─ ainda que de maneira superficial.
É claro que em torno do debate pouco ou nunca se dá ouvidos ao público colocado em pauta. A juventude raramente tem a liberdade de esboçar uma visão acerca da sua própria maneira de encarar o mundo ou futuro, e isto não é de hoje. Mas para além de um discurso meramente emotivo, que tenda a defender o direito da minha geração à fala, quero na verdade qualificar um pouco o debate, e ampliar o horizonte do discurso corrente, que desde sempre foi taxativo para com as gerações futuras. Portanto, colocarei aqui alguns dos motivos do por que vejo que estamos condicionados a simplesmente existir, em um mundo no qual a capacidade de resistir, e criar para transformar, se esvaiu em discursos desestimulantes e fatalistas frente a realidade.
A capacidade de sonhar sempre foi fundamental para a constituição subjetiva de qualquer indivíduo. Esta, funciona tanto como estimulante para construção de futuros individuais, quanto para a organização e planejamento social e político. É comum tanto entre os considerados eruditos, quanto no senso comum, acusar uma perda desta capacidade pelos mais jovens. Visto que estes, embebedados em seus dispositivos controladores (telefone celular, redes sociais, vídeos curtos, etc), não conseguem nem mesmo formular previsões que ultrapassem os limites do seu cotidiano.

Nesse ponto, retomando o que apontei acima, entendo que é comum das gerações anteriores criticarem a seguinte por qualquer razão que defira de sua própria criação. Porém não acho que desta vez eles estão completamente errados em tal apontamento. A capacidade de visualizar um futuro melhor do que o que vivemos agora sempre foi motor das principais transformações sociais que aconteceram no mundo. Estas “utopias” ─ ainda que demorassem tempo para perder este status ─ eram frutos de um sonho que, começou com indivíduos, atravessou a esfera individual, para por fim impactar coletivos. Sendo a partir da mobilização destes que se efetivaram de maneira concreta na realidade. Este processo é sim demorado, e sim, muitas vezes ultrapassam os limites temporais da curta vida humana. Por isso, que exigem uma certa abstração do senso individual em prol do coletivo ─ o que tem se tornado cada vez mais complicado.
Visto que essa falta de capacidade de sonhar é frequentemente imputada às novas gerações, vejo que talvez o problema não se reduza simplesmente a uma juventude fraca ─ que não teve que enfrentar grandes processos ditatoriais, ou guerras mundiais avassaladoras, por exemplo ─ mas sim, de uma juventude que chega ao século 21 com: profundos problemas sociais, profundos problemas econômicos, profundos mecanismos de controle que se estabelecem entre diversos dispositivos de controle de massas, profundas psicopatologias, profundos problemas ambientais, profundos problemas educacionais, profundos problemas tecnológicos, profundos problemas espirituais, ad infinitum… Enfim, tudo é profundo. Isso significa que a criança que nasce hoje, mais do que nunca, nasce imersa em um ambiente de problemas altamente estruturados e enraizados na sociedade, que através de um rede, se conectam e se espalham, causando efeitos diretos na vida de cada um.
A partir deste argumento, alguém poderia dizer que tais problemas que aqui levanto já estavam presente no século 20, e mesmo assim a população ─ ou uma parte significativa dela ─ foi diretamente reativa às problemáticas que os cercavam. Eu certamente direi que é verdade, e ainda por cima acrescentei algo a mais. Acho que a nossa geração, por estar imersa em todas essas profundas questões, nunca teve tantos tipos variados de motivações para poder sonhar com um futuro melhor. Por que então isso não acontece?
Como nos exemplos citados, parece que o fato da juventude estar desmobilizada na contemporaneidade não decorre de um simples fator. Mas sim, de toda uma rede de dispositivos que procuraram formar esses corpos apáticos. Nesse sentido, a ideia de corpos apáticos pode remeter ao leitor o conceito de corpos dóceis elaborado pelo filósofo francês Michel Foucault. Para Foucault, o indivíduo dócil é aquele que é disciplinado e produtivo, o que o torna um instrumento necessário para manutenção das relações de poder. Porém o corpo apático que coloco aqui parece ser um passo além da ideia foucaultiana, pois a apatia já não produz mais qualquer disciplina no indivíduo, muito menos qualquer utilidade. Nele resta apenas uma não-reação das formas de dominação, que da mesma maneira, nutre as relações de poder para continuar se fortalecendo mesmo com a produção de uma inércia.
Por que então é melhor criar corpos que não são úteis para sociedade? Ainda que pareça ser contra-intuitivo a ideia de formar pessoas sem utilidade alguma na sociedade, na lógica de poder contemporânea, o corpo dócil pode ser mais perigoso, pois este ainda carrega dentro de si alguma capacidade de se perceber dominado, mobilizar os outros, e esboçar uma tentativa de sair dessa condição ─ o que é possível ser visto nos mais diversos movimentos de reivindicação trabalhistas da história por exemplo. Portanto o corpo apático parece ser uma sofisticação ainda maior das relações de dominação e poder que se estabelecem sobre o indivíduo. Uma forma de controlá-lo e impedi-lo de reagir, não mais pela sua classe social, mas sim por uma voluntariedade que o sujeito aceita a partir da imersão em um discurso de impotência.
Por isso é necessário se atentar ao discurso, mais especificamente do discurso corrente. Este tema não é novidade do século 21. Contudo, é neste momento que ele ganha dimensões tão extraordinárias que nem os pensadores mais perspicazes do passado conseguiram prever. A profunda lacuna que separa os modelos de manipulação propagandística clássicas ─ que moldaram a sociedade do século 20 ─ para os que agora exercem esse papel. Demonstram que cada vez mais a digitalização do mundo está sendo um motor de criação de anomalias nas subjetividades dos sujeitos. Isto decorre do fato de que o mundo tecnológico permitiu saltos quânticos em relação à eficiência das formas com que os dispositivos de controle evoluem e interagem entre si. Indo além, os grandes monopólios ─ vulgo donos do mundo ─ que estão à frente desses dispositivos não limitam esforços em programar algoritmos que demonstram unicamente aquilo que será bom para manutenção dessas relações de poder. Isto é, o famoso discurso que invade o cotidiano desde a mais tenra idade, até a velhice pueril: “Você não vai mudar o mundo”.
Esta retórica, além de extremamente perigosa, está se enraizando cada vez mais no desenvolvimento social. Tendo impactos até nas organizações historicamente conhecidas por tentar permanecer combativas e lúcidas frente à condição de dominado dentro desta lógica ─ talvez por isso que as tradicionais formas de luta não estejam sendo tão eficientes mais.
Todas essas questões dariam livros, e não cabe aqui destrinchar cada uma delas. Quero apenas mostrar que para além de uma suposta geração fraca, há todo um ambiente que possibilita essa situação. A apatia geracional, portanto, não é fruto apenas da tecnologização das relações sociais em si, mas sim de um efeito que dela emerge. O mundo tecnológico ─ e o discurso que o justifica ─ está formando um novo tipo de subjetividade nos sujeitos. Sendo este, extremamente individualista e irresponsável em relação à própria posição no mundo. O indivíduo cresce sem a menor noção de responsabilidade por si e pelos outros. E isto agrava toda e qualquer estrutura social, pois um indivíduo que não pensa no outro nem em si não consegue ser político. A política então entra em crise, e o indivíduo sofre. Normalmente esse sofrimento o motivaria a tentar sair destas condições, mas neste caso, o discurso não o permite. A política por fim morre, não há mais espaço para ela.
Tudo isso, aliado a uma terceirização da autonomia intelectual, justificam a impossibilidade ─ sem um extremo fruto do acaso ─ de sair destas bolhas de conhecimento que enclausuram e “confortam” o sujeito em sua condição de impotência em relação ao mundo. Sendo isso, o que me leva a crer que o sujeito que não sabe sonhar não é que não consegue deter esse saber. Ele na verdade nunca foi ensinado de forma concreta que isso é possível. Desde que ele está aqui é assim, logo, assim sempre foi, e é assim que vai ficar.
Em decorrência disso, esse breve panorama geral do assunto, tem por fim realizar uma provocação mais profunda às gerações que são responsáveis pelas que hoje amadurecem no mundo. Quando grifo a palavra responsável, é para impor justamente o fato de que, elas tanto são responsáveis legalmente por criar seus filhos ─ na esfera privada ─, quanto por criar o mundo que eles vivem ─ na esfera pública ─, e isso jamais deve ser negligenciado. Nesse sentido, parece que quando analisamos a opinião corrente, as gerações responsáveis sempre procuraram se eximir da responsabilidade pelas suas atitudes e seus resultados. Acredito portanto, que está mais que na hora de superarmos esse senso comum que repete com tranquilidade que a geração antiga sempre irá criticar a conseguinte. Repetir isso pode ser uma das grandes armadilhas que estimulam a produção de apatia.
Talvez esteja na hora não só dos jovens aprenderem a sonhar, reagirem, transformar. Mas dos adultos se entenderem também como agentes de transformação social responsáveis por tudo que acontece, e por tudo que acontecerá ao seu redor. Frente às ameaças totalitaristas, deixar de crer que a idade faz se exaurir as responsabilidades. Para que talvez a ideia de “não mudar o mundo” ─ que se resume em um ─ e “lide com os escombros e tente sobreviver” deixe de fazer sentido no mundo atual. Para que essa apatia generalizada pare de fazer sentido para a juventude que virá.
* Germano Bolzon Cerezer é graduando do curso de Licenciatura Plena em Filosofia, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Santa Maria, Rio Grande do Sul.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.
