Paulo César Carbonari*
Há quem olhe para o tempo como se fosse simplesmente transcurso linear, mas se pode olhar para ele de outros modos. A primeira perspectiva, a mais comum, somente cronológica, o toma de modo abstrato, repetitivo e quantificável. Há outra, que o toma na concretude complexa, irrepetível, criadora e qualificável, não somente no cronológico, mas particularmente como realização única.
Na posição alternativa ao cronológico, demorar, não é só deixar o tempo passar, mas incorrer na possibilidade de perder sem que o que se perdeu possa ser recuperado. Vidas perdidas ou não adequadamente protegidas sem as medidas necessárias por demora na sua adoção não retornam, de modo algum. Agir para fazer viver e evitar morrer, escapando aos modos necrófilos de atuação.
Proteger vidas não é só para simplesmente mantê-las vivas (vida nua), mas para que vivam em abundância. E isso vale para vidas singulares, mas também vale para sociedades, coletivos, grupos. No caso da vida social, viver é mais do que deixar o tempo passar, é construir relações no tempo e com o tempo, de modo a que os acontecimentos que nele se faz realizar sejam realizadores de mais vida (ou por vezes destrutivos dela).
As escolhas sobre ações coletivas, como são as políticas públicas, são parte de processos nos quais o tempo é mais do que dias ou meses transcorridos. Nelas se pode fazer acontecer o tempo de agora, realização, proteção, ou tempo de nunca, postergação e desproteção. Cada dia deixado transcorrer sem as adequadas medidas de proteção não é somente mais um dia, mas a possibilidade de fazer a desproteção colaborar para que não haja o cuidado para a manutenção, o desenvolvimento e a realização da vida, singular e coletiva.
Querer unidade sem diversidade, uniformidade sem divergência, compreensões únicas sem alternativas, é colocar-se numa posição que acredita poder controlar, desde o poder instituído, a criação fecunda da potência gerada pela “desordem” da participação. A dinâmica da vida social e política é movimento, entrelaçamento e integração das diferenças, mas também dissenso, divergência, conflito. A necessidade violenta de reduzi-las a uma uniformidade lhe é destrutiva e, sendo-lhe destrutiva, resulta em negligenciamento.
Supor que a bem ordenada ordem de quem detém o poder, a lei e a ordem, é capaz de fazer frente a insurgência da diversidade constitutiva das lutas e dos processos coletivos é escorar-se num tempo frio e vazio que tem como resultado não mais do que aquilo que os controles calculáveis e calculadores são capazes de fazer: raios congelantes que matam sementes, plantas e frutos.
A participação é sempre criativa e se faz como tempo inovador, é desenquadradora desalinhadora. Uma política construída com participação popular é aquela que trabalha proativamente com a possibilidade de atualização permanente, de desalinhamentos constitutivos. Não dá para prender a primavera. Ela chegará a seu tempo e sempre vai trazer novos e inovadoras possibilidades.

A garantia da participação não é uma concessão paternalista de quem está bem posicionado e instalado na potestas, que concede aos que ficaram “vulneráveis” pelo caminho. A participação é construção e conquista permanente e, por isso, risco de ser solapada, mesmo quando se espera não venha a sê-lo. Utilizar os mais altor recursos para fazer acontecer a participação, os processos que abre, os produtos que apresenta, as realizações que inaugura é fundamental para quem a tem em alta conta e como efetividade na temporalidade complexa e exigente. Não será rebaixando normativamente suas construções, com estratégias para exercer controles fátuos, que se construirá processos de longa duração e de consistente efetivação.
Perguntar-se pelo que falta num processo participativo é manter o caminho aberto, pois, num exercício assim, sempre haverá falta. Ou seja, nunca se chegará ao mais perfeito das perfeições. O que se terá serão as melhores possibilidades dentro de uma contextualidade, uma circunstancialidade, uma correlação, uma dinâmica. Por isso, a participação não pode ser até o ponto que interessa a quem estiver em posição de poder, ou até que não confronte o que um ou outro dos que estiverem em posição de poder entender que seja aceitável… a participação, ou será a todo o tempo e o tempo todo e sobre todos os aspectos, inclusive sobre as regras que vierem a reger a ela mesma, ou não será. Participação outorgada e controlada não é participação.
Demorar é uma virtude para quem age de modo participativo. Isso sem confundi-la com procrastinação. Mas, demorar sem participação já não é aceitável como parte dela, pois pode soar exatamente recurso de sua inviabilização.
No caso de políticas públicas construídas com participação, e quando esta participação contou com representantes do poder em espaço paritário, os resultados dela colhidos não podem ser recebidos para serem revisados por um dos lados. Se precisarem ser revisados, que se reinstale um espaço participativo à altura e nas mesmas condições do anterior para que sejam produzidas as revisões, afinal, em processos participativos nada estará definitivamente pronto e acabado. O que não pode é o poder usar de subterfúgios normativos para esconder-se da participação e, dessa forma, por controlar os recursos do poder, produzir o que lhe interessa, transformando o que feito com participação em “arremedo de participação”. Se o fórum de elaboração contou com representações, não faz sentido que a força do poder se imponha por não ter sido feliz e fazer valer sua posição no espaço participativo. Fazer isso equivaleria a desrespeitar o processo participativo e exercitar o poder imperial da força sobre a divergência.
Aceitar a superioridade do tempo sobre quaisquer outros interesses é colocar-se em posição de abertura e confiança. Exercer controles por expedientes de poder imperial não só desrespeita a quem fez parte dos processos participativos, mas fecha o tempo e, consequentemente, qualquer possibilidade de fluxo para a construção participativa e dialógica.
Ninguém tem o monopólio do saber e nem mesmo a ciência suprema das necessidades que precisam ser satisfeitas para que a proteção de quem está em risco possa ser feita. O melhor caminho para encontrar as melhores respostas é manter aberto o diálogo capaz de, por um lado, ir traduzindo as demandas resultantes de escutas nas quais se exercita a “justiça epistêmica”, sem substituição de vozes ou sujeitos/as, já que, direitos não se realiza nem por representação e nem por procuração, mas por participação direta e efetiva de cada sujeito/a de direitos, e, por outro, ir encontrando as formulações que, respeitados todos estes processos, são aquelas que melhor atendem às necessidades, sem ficar presos a qualquer tipo de “cálculo do suportável” ou a exigências de contingenciamentos austericidas.
A proteção da vida não cabe e nem pode caber em diagramas, por mais bem desenhados. Planos são possibilidades de resposta razoável e consistente às necessidades de proteção da vida pela realização de condições de vida em abundância. O melhor caminho para saber se atingiu maior ou menor proximidade com este parâmetro nunca será uma resposta desde o poder de quem detém o poder, mas desde o poder insurgente das potências daqueles e daquelas que são os/as sujeitos/as necessitados/as.
É o dinamismo, a criação e a mudança que fecundarão as necessárias transformações das realidades que mantém a desproteção e impedem a vida em abundância. Não será a contenção, a fixação e o controle, por quem quer que seja, ainda mais por quem tem poder, que implementarão as medidas que se aguarda serem feitas para que quem quer seguir fazendo a vida acontecer não seja impedido/a e nem mesmo eliminado/a. Acreditar e confiar para fazer juntos/as será sempre mais virtuoso do que exercer controles, afastar e desqualificar.
A construção coletiva nunca chegará a uma solução final e definitiva, exceto se for do tipo uniformizador e controlador – como aliás já se experimentou em regimes totalitários e fascistas. As soluções serão sempre aquelas que melhor contemplarem as diversidades presentes e exercidas em proximidade e em solidariedade. Manter a abertura, deixar alguma “fresta”, pondo-se a caminho, é o melhor a ser feito, fazendo o caminho ao caminhar, como travessia que, mais do que buscar margens definitivas, acredita na transitividade, que sempre terá na interdependência de quem está em travessia o principal recurso para seguir, uns e umas apoiando a outros e outras.
Caminhos que se quer de longa duração somente serão levados adiante se quem estiver a caminho se comprometer com ele, seguindo juntos/as. Quem acha que fazendo apesar dos caminhantes será capaz de encurtar caminhos o que encontrará não será outra coisa do que caminhos interrompidos e caminhantes deixados pelo caminho. E não precisa nem complicar com a possibilidade de efetivar ou não direitos, de respeitar ou não a dignidade. Não há dúvidas de que direitos e dignidades serão melhor efetivados e respeitadas quanto mais caminhos abertos forem abertos e mantidos abertos.
*Paulo César Carbonari é doutor em filosofia (Unisinos), membro da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH Brasil). Contato [email protected]
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.