Porto Alegre vive uma crise prolongada na saúde pública, com superlotação crônica das emergências, adoecimento dos profissionais e precarização das condições de trabalho. É o que aponta o relatório “Raio-X da Saúde: A Realidade de Quem Está na Linha de Frente nas Emergências de Porto Alegre”, elaborado pelo mandato do vereador Alexandre Bublitz (PT).
Lançado nesta quarta-feira (9), o estudo resulta de visitas a nove unidades de saúde realizadas entre 27 de maio e 26 de junho de 2025. Foram feitas entrevistas com 64 profissionais e gestores e 57 usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).
Durante o lançamento do relatório, usuários, conselheiras, médicos e representantes de entidades da saúde reforçaram a gravidade da situação nas emergências da Capital e a urgência de reorganizar o sistema, com fortalecimento da atenção básica, valorização dos profissionais e ampliação da participação popular. O evento também contou com a presença da vereadora Grazi Oliveira (Psol).
Entre os dados mais alarmantes estão unidades operando com até 400% de lotação. O relatório aponta ainda uso de consultórios e poltronas como leitos improvisados, internações ultrapassando 20 dias em pronto-atendimentos e relatos generalizados de burnout, ansiedade e afastamentos por saúde mental entre trabalhadores da linha de frente.

“O caos nas emergências não é novo, mas está se agravando ano após ano. E quem mais sofre com isso são os trabalhadores e os usuários do SUS”, aponta o vereador Bublitz. “O relatório dá voz a quem vive esse colapso todos os dias e também apresenta propostas urgentes para reverter esse cenário”, complementa.
Superlotação, filas e internações prolongadas
A equipe visitou Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), hospitais, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e emergências especializadas, como o Hospital Presidente Vargas e o Plantão de Saúde Mental do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). A maioria dos serviços opera com ocupação muito acima da capacidade, chegando a até quatro vezes o número de leitos disponíveis. Há registros de internações prolongadas em espaços destinados exclusivamente a atendimentos de urgência.
No PACS Zona Sul, por exemplo, a média de permanência de pacientes chega a uma semana, com casos que ultrapassam 20 dias. No Plantão de Saúde Mental, uma paciente permaneceu internada por quase seis meses, escancarando a falta de retaguarda na rede psicossocial.

Adoecimento e violência contra trabalhadores
A pressão constante tem levado ao esgotamento emocional, afastamentos médicos e episódios de violência. “O Hospital Materno Infantil Presidente Vargas já conta com funcionários que não conseguem realizar pausas básicas, como ir ao banheiro durante o plantão”, exemplifica o relatório. No Hospital de Clínicas, foram instalados botões de pânico nos consultórios e reforçada a segurança após sucessivas agressões verbais e físicas contra trabalhadores.
Além disso, falhas na comunicação entre os níveis de atenção, escalas desfalcadas e a impossibilidade de realizar capacitações comprometem tanto o atendimento quanto a saúde das equipes.
Emergências como “porta de entrada” do SUS
O relatório aponta como um dos principais gargalos o colapso da atenção básica, que empurra casos de baixa complexidade para as emergências. Mais de 80% dos usuários ouvidos afirmaram ter procurado diretamente o pronto-atendimento, sem passar pelas Unidades de Saúde da Família (USFs). O motivo, segundo os relatos, é claro: falta de médicos, demora na marcação de exames e consultas e ausência de vínculo com os postos de saúde.
“Nem adianta ir no posto… vive sem médico, por isso vim, aqui, no PACS: já faço os exames e saio com o remédio… nem sempre tem lá”, disse uma usuária entrevistada. Outras pessoas relataram que as emergências são vistas como única alternativa, já que a espera por uma consulta especializada pode ultrapassar um ano.

Propostas urgentes: cuidar de quem cuida e reorganizar o fluxo
A partir da escuta direta de profissionais e usuários, o relatório sistematiza 25 propostas de curto e médio prazo. Entre as principais diretrizes está o enfrentamento do adoecimento dos trabalhadores da saúde. O aumento expressivo de afastamentos por saúde mental, incluindo casos de burnout e ideação suicida, levou o vereador a defender a criação de um Plano Municipal de Saúde do Trabalhador da Saúde, para “cuidar de quem cuida”.
Outra frente é o fortalecimento da atenção básica, como estratégia para aliviar a superlotação das emergências. Conforme o Protocolo de Manchester, cerca de 80% dos atendimentos atuais nas emergências são classificados como casos de baixa complexidade (azul ou verde). O relatório propõe a ampliação das equipes da Estratégia Saúde da Família, com mais médicos de família e agentes comunitários.
No material também são recomendadas ações para enfrentar a escassez de profissionais e a ausência de padronização no atendimento: unificação de prontuários, adoção de protocolos integrados e redimensionamento das equipes conforme a demanda real. Por fim, a ampliação de leitos de retaguarda é vista como essencial para reduzir o tempo de permanência nas emergências e garantir o fluxo entre os níveis de atenção.
Conselhos e entidades da saúde alertam: colapso é estrutural
A conselheira estadual Inara Ruas, do Conselho Estadual de Saúde e do Sindicato dos Enfermeiros do RS, destacou que o diferencial do levantamento foi “ir ao território, ouvir os usuários, os gestores e os trabalhadores da saúde, e com isso também apresentar propostas concretas para melhorar a situação da saúde da cidade”.
Segundo ela, a crise da atenção básica e o subfinanciamento do SUS não são exclusividade de Porto Alegre, mas atingem diversos municípios. “Muitos casos classificados como azul ou verde pelo protocolo de Manchester deveriam ser resolvidos na atenção primária.” Ruas defende que é preciso rever o modelo de gestão da saúde, garantir o dimensionamento adequado das equipes e melhores condições de trabalho. “Estamos juntos, tentando construir o SUS com participação popular”, pontua.
Representante do Conselho Regional de Enfermagem do Rio Grande do Sul (Coren/RS), Sônia Regina Coradini afirmou que os problemas enfrentados hoje já vinham sendo denunciados há anos, mas se intensificaram. “Trabalhamos diretamente com a enfermagem, profissionais que estão na linha de frente, recebendo agressões e sem o devido acolhimento.”
Ela também alertou para o impacto da terceirização na atenção primária: “Temos alta rotatividade, equipes devassadas e legislações que não dialogam com o perfil epidemiológico das comunidades”.

Fortalecimento do sistema
A realidade apontada no relatório e nas falas dos participantes da reunião foram confirmadas pela médica Laís Del Pino Leboutte, do Conselho Regional de Medicina (Cremers). “Fiscalizamos postos e hospitais, e todas essas situações são cotidianas, preocupantes e alarmantes.” Para ela, a superação da crise exige articulação entre sociedade civil e trabalhadores. “O trabalho de um impacta o do outro. Se temos uma chance de sucesso, em algum momento, de reverter esse panorama é nos associarmos. A sociedade tem que se organizar melhor, não em segmentos, mas temos que falar, é dai que vem a solução.”
Representando o Conselho Nacional de Saúde (CNS), a médica reguladora Rosângela Dornelles defendeu o fortalecimento dos conselhos locais como espaços de escuta e participação: “É necessário garantir o protagonismo do usuário na formulação das políticas.” Médica de saúde da família, Dornelles chamou atenção para a superlotação na Capital. “Se está tudo lotado nas emergências, é porque está lotado para trás. Isso gera um efeito retrógrado, com aumento da mortalidade e sequelas. Não vamos resolver isso apenas com gestão. Ou a gente encara que a pobreza aumentou, que o acesso, a desigualdade não condiz também com o acesso à saúde, ou gente não vai conseguir melhorar esse panorama”, alertou.
Em sua intervenção, a conselheira municipal e usuária do SUS Maria Inês Botna também reforçou a importância de fortalecer a atenção básica e os conselhos gestores. “Na emergência, mesmo demorando, a pessoa sai com a situação resolvida. Na UBS, enfrenta várias etapas. E o que a gente vê é a falta de vínculo e alta rotatividade.” Como em muitas manifestações, Botana criticou terceirização e defendeu o serviço público com carreira e estabilidade: “Sem vínculo não tem confiança. Sem confiança, não tem saúde”.
Para o ouvidor da Defensoria Pública do RS, Rodrigo Medeiros, o relatório é um trabalho feito com escuta atenta e propostas concretas. Ele destacou que “não há saídas fáceis para as questões sociais”, mas que é preciso ressignificar o investimento em direitos sociais e humanos por parte do poder público. “Os resultados quase sempre são a médio e longo prazo”, disse.
O que está em jogo
O secretário municipal de Saúde, Fernando Ritter, não compareceu ao lançamento do relatório. O vereador Bublitz informou que está sendo organizada uma entrega pessoal do documento, além da apresentação à Secretaria Estadual de Saúde e ao ministro da Saúde, Alexandre Padilha.
“Faz-se necessário colocar em foco os profissionais, os gestores e os usuários de saúde, dando voz a quem está na linha de frente. A resposta pela execução de medidas já conhecidas, mas que precisam ser realizadas com planejamento a longo prazo e seriedade por parte do poder público”, conclui o vereador.
O Brasil de Fato RS entrou em contato com a Prefeitura Municipal de Porto Alegre solicitando posicionamento sobre o Raio X. Não houve retorno até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestação.
