Há alguns anos, o Brasil tem um olhar mais cuidadoso com o dia 25 de julho. A data celebra o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e coloca luz em mulheres negras de destaque nacional e internacional. Nesse clima de comemoração, quero relembrar Mãe Dora de Oyá, Mãe de Santo baiana radicada no Distrito Federal, que une música e espiritualidade em uma trajetória emocionante.
Outro dia, um vídeo em uma famosa rede social me chamou atenção. Era Mãe Dora cantando para Iansã e Xangô, Orixás cujos domínios são os trovões, ventos e tempestades. Ao lado do filho de santo Khalil Santarém, ela apresentou para o mundo “Casal do Dendê”, mais uma composição de sua autoria:
“Quarta-feira/De trovão e ventania/Logo ao romper do dia/Vou fazer meu acará/Soprar pemba/Para a vida melhorar/Vou rodar um amalá […] Eu tenho fé em Oyá, Eu tenho fé em Xangô/ Kaô Kabecilê Kaô”.
Os versos chamaram atenção de muita gente: foram mais de 19 mil curtidas e 225 mil visualizações. Além do fiel público dos Filhos de Dona Maria, grupo criado no terreiro de Mãe Dora, grandes referências viram e deixaram seu “like” no vídeo. O produtor cultural Dom Filó e a filósofa Helena Theodoro – a primeira mulher negra a obter o título de doutora no Brasil – foram alguns que ficaram hipnotizados com o samba da Ialorixá.
Chefe do terreiro Ilê Axé T’ojú Labá, Mãe Dora também é cantora, compositora, costureira e fisioterapeuta. Nascida em uma cidade do oeste baiano chamada Riachão das Neves, Doralina chegou ainda menina ao Distrito Federal. Na capital federal, ela lutou pelo fim da ditadura ao lado de integrantes do Partidão; tornou-se fisioterapeuta e formou família. Com o chamado espiritual, passou a ser conhecida como Mãe Dora de Oyá.
Ela faz da sua casa um lugar de resistência e celebração da ancestralidade negra. Com o projeto ABC Musical, Mãe Dora comandou a musicalização de crianças e adolescentes do Jardim ABC, bairro da Cidade Ocidental que faz divisa com Santa Maria (DF) – onde está localizado o terreiro. O sucesso foi tamanho que dois desses jovens foram parar na renomada Escola de Música de Brasília.
O terreiro também é o local do nascimento do grupo Filhos de Dona Maria. Formado por Amílcar Paré e Khalil Santarém, filhos de santo de Mãe Dora, o grupo já levou seu samba até para a África. Em 2015, eles lançaram o disco “Todos os Prazeres”; e, no ano seguinte, tocaram em Beira e Maputo, pelo Festival Nacional de Cultura de Moçambique.
Outro projeto que ganhou o mundo foi o Afoxé Ogum Pá. Criado em 2017, o Afoxé, responsável por levar o Candomblé para a rua, já tocou em Cavalcante (GO), São Paulo (SP) e em Santiago de Cuba, durante a 39ª edição do Festival del Caribe.
O reconhecimento por tantas iniciativas transformadoras chegou ao longo do tempo. Mãe Dora de Oyá já foi homenageada em escolas, no Festival Latinidades e na Câmara Legislativa do Distrito Federal, quando ganhou o IV Prêmio Marielle Franco de Direitos Humanos da Comissão de Direitos Humanos.
Para a Ialorixá, a arte é uma maneira de ver e sentir a espiritualidade. Ela costuma destacar a importância da música, que cura, equilibra e dá força: “Nas horas de dor, é a música que me tira desse lugar”.
Ao perceber essa leitura tão sensível da arte, sobretudo da música, decidi registrar parte da história de Mãe Dora em “O samba é santo: escrevivências sobre a Mãe Dora de Oyá”. Defendida no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília, a minha tese fez uma reflexão sobre a dimensão espiritual do samba e detalhou os momentos mais marcantes da vida da Ialorixá.
Em tempos que o Brasil destila tanta raiva contra mulheres, mulheres negras, pessoas de religiões de matriz africana, ver Mãe Dora e sua arte ganhar o mundo pelas redes sociais é inspirador.
Que seja possível celebrar Mãe Dora de Oyá e outras tantas mulheres negras em todos os meses do ano. No Brasil e no mundo.
*Maíra de Deus Brito é jornalista, professora e pesquisadora.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.