Ouça a Rádio BdF
A coluna do Movimento Brasil Popular é publicada quinzenalmente às quartas-feiras. Escrita por militantes do movimento de todo o Brasil, ela aborda temas relacionados à política brasileira, luta id...ver mais

Taxar os ultraprocessados é defender a vida 

No Brasil, quem tem fome paga mais imposto que quem tem jatinho.

Por Júlia Garcia*

O sistema tributário brasileiro é marcado por desigualdades estruturais e não é neutro, técnico ou apenas contábil — como muitas vezes tentam nos fazer acreditar. Ele é fruto de escolhas políticas: escolhas sobre quem deve pagar a conta do Estado e quem será poupado. Na prática, ele foi desenhado para proteger os muito ricos — aqueles que vivem de lucros, dividendos e heranças — enquanto recai com mais força sobre quem consome produtos básicos, como arroz, sabão e feijão. Em outras palavras: no Brasil, quem tem fome paga mais imposto que quem tem jatinho.

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mais da metade da arrecadação tributária nacional (cerca de 54%) vem do consumo, enquanto menos de 25% tem origem na renda ou no patrimônio. Isso faz com que a carga de impostos sobre bens essenciais pese muito mais no bolso dos mais pobres. Um estudo da Oxfam Brasil revelou que os 10% mais pobres chegam a comprometer 32% da sua renda com impostos, enquanto os 10% mais ricos contribuem com apenas 21%. A regressividade se agrava pelo fato de que lucros e dividendos seguem isentos no Imposto de Renda desde 1996 — o que significa que os super-ricos, que recebem a maior parte de sua renda por essa via, pagam proporcionalmente menos que professores, motoristas ou trabalhadoras domésticas. A tributação brasileira está, portanto, invertida: quem vive do trabalho sustenta o Estado, enquanto quem lucra com a especulação e a indústria da doença é protegido por isenções e brechas legais.

É nesse contexto que se insere o debate sobre a tributação dos alimentos ultraprocessados. Por que o Estado brasileiro ainda concede isenções e subsídios a produtos que adoecem a população e pressionam o Sistema Único de Saúde?

Refrigerantes, salsichas, biscoitos recheados, macarrões instantâneos: todos esses itens são produtos ultraprocessados — isto é, formulações industriais que combinam açúcar, gorduras e aditivos químicos para simular comida e prolongar o tempo de prateleira. Vendidos como alimentos práticos e baratos, esses produtos estão profundamente associados ao aumento de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes tipo 2, hipertensão, doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer.

Segundo a OPAS, cada aumento de 10% no consumo desses produtos está associado a um aumento de 21% no risco de morte por doenças crônicas. No Brasil, essas doenças representam mais de 72% das causas de morte — e seu tratamento custa bilhões por ano ao sistema público de saúde. Só a obesidade e suas complicações já representam R$ 3,3 bilhões em gastos anuais do SUS.

Enquanto isso, alimentos saudáveis como frutas, legumes, feijão e farinha — oriundos da agricultura familiar — enfrentam múltiplas taxações ao longo da cadeia produtiva. Isso significa que, na prática, é mais barato comprar um pacote de bolacha recheada do que um cacho de banana. É mais barato beber refrigerante do que levar suco natural pra casa. O resultado é que a “comida de verdade” fica cara e inacessível, e a má alimentação, muitas vezes, é a única disponível para famílias periféricas.

Quem mais sente essa desigualdade alimentar são as mulheres, especialmente as negras e periféricas, que vivem a chamada gestão da escassez no cotidiano. São elas que, com pouco ou nenhum recurso, garantem comida na mesa e enfrentam o adoecimento dos filhos, companheiros e da comunidade. Dados do IBGE mostram que mais de 40% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres, sendo que nas periferias esse índice é ainda maior — muitas vezes em condições de informalidade, desemprego ou jornadas exaustivas de trabalho. 

São essas mesmas mulheres, sujeitas ativas da luta pela soberania alimentar. Nos bairros populares, são as mulheres que organizam cozinhas solidárias, criam hortas comunitárias, promovem rodas de autocuidado, distribuem alimentos e produzem redes de apoio em meio às vulnerabilizações e fazem isso movidas pela solidariedade e pela necessidade. Nesse cenário, uma medida urgente e viável seria a inclusão dos ultraprocessados no Imposto Seletivo, previsto na nova reforma tributária. Estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) estima que uma alíquota de 20% sobre ultraprocessados poderia gerar cerca de R$ 60 bilhões por ano para os cofres públicos. Isso equivale a quase cinco meses do programa Bolsa Família — e poderia financiar milhares de cozinhas populares, fortalecer a agricultura familiar, ampliar a alimentação escolar e garantir o acesso à comida saudável para milhões de brasileiros.

Mas o lobby da indústria alimentícia — representada por conglomerados como JBS, BRF, Nestlé e Ambev — tem atuado intensamente para barrar essa proposta. Não por acaso: os super-ricos brasileiros estão diretamente ligados à indústria de alimentos ultraprocessados. Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Sicupira (Ambev), os irmãos Batista (JBS/Seara/Friboi) e Marcos Molina (Marfrig) figuram entre os maiores bilionários do país — lucrando com produtos que fazem mal à saúde e continuam isentos de penalidades fiscais.

A luta por justiça tributária não é apenas uma questão técnica: é uma disputa por projeto de sociedade. É sobre decidir quem deve pagar mais e como o Estado deve usar o dinheiro arrecadado. É também sobre garantir o direito humano à alimentação adequada, saudável e culturalmente apropriada — algo que vai muito além de matar a fome com produtos industrializados.

A inclusão dos ultraprocessados no Imposto Seletivo, somada à destinação vinculada desses recursos para políticas públicas de alimentação, é uma das saídas mais concretas para enfrentar a crise alimentar e sanitária que vivemos. É uma medida de saúde pública, de combate à desigualdade, de justiça fiscal e de cuidado com a vida. Taxar os ultraprocessados é taxar o lucro de poucos para proteger a saúde de milhões. É dizer que a vida do povo vale mais do que o poder das corporações.

Para construir essa luta de forma coletiva, por justiça tributária e soberania alimentar, movimentos populares em todo o país, até o Dia Mundial da Alimentação, em 16 de outubro, estão mobilizando a Jornada Nacional “Taxar os Super-Ricos, Alimentar o País”, que denuncia as contradições do sistema tributário brasileiro e convoca o povo à ação. O chamado é claro: é preciso tributar o que adoece e financiar o que alimenta.

Com foco na formação popular e na organização de base, a jornada articula dois eixos centrais: a inclusão dos alimentos ultraprocessados no Imposto Seletivo — retirando-os da cesta básica e reconhecendo seus impactos nocivos — e o fortalecimento das políticas públicas que garantem comida de verdade no prato, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), as cozinhas solidárias, as hortas comunitárias e a agricultura familiar. A lógica é inverter a balança: tirar o privilégio da indústria e colocar o cuidado e a vida no centro do orçamento público.

Nos territórios, a mobilização acontece de forma concreta: com assembleias de bairro, rodas de estudo sobre o lobby das grandes corporações e mutirões populares. Essa pedagogia da luta, que forma, mobiliza e organiza, mostra que justiça fiscal e soberania alimentar caminham juntas — e que a disputa não é apenas por arrecadar mais, mas por decidir quem paga, quem lucra e quem vive.

*Júlia Garcia é do Setor Nacional de Mulheres do Movimento Brasil Popular.

Veja mais