Uma pesquisa inédita voltada exclusivamente aos policiais civis do Rio Grande do Sul foi lançada nesta semana pelo sindicato que representa escrivães, inspetores e investigadores da corporação (Ugeirm). A iniciativa pretende mapear casos de assédio moral, sexual e comportamentos discriminatórios ocorridos no âmbito da Polícia Civil entre os anos de 2015 e 2025. A coleta de dados será realizada entre os dias 15 de julho e 18 de agosto, por meio de um formulário anônimo e sigiloso.Após 181 anos, primeiro negro assume a chefia da Polícia Civil do Rio Grande do Sul.

A proposta surge em resposta a um cenário de preocupação crescente com o adoecimento mental de servidores da Segurança Pública e à persistência de práticas abusivas que, segundo o sindicato, se mantêm ocultas devido ao medo de represálias e à rigidez hierárquica da instituição.
De acordo com a diretora da Ugeirm, Neiva Carla Back, a pesquisa representa uma tentativa de romper o silêncio histórico sobre o tema. “O assédio é uma realidade conhecida dentro da Polícia Civil. Mas, por medo e falta de proteção, muitos servidores se calam. A pesquisa é uma forma de escutar quem está na ponta, quem sofre no dia a dia, e começar a construir caminhos concretos para enfrentar esse problema”, afirma.
A pesquisa está aberta a todos os cargos da corporação – comissários(as), delegados(as), escrivães(ãs), inspetores(as) e investigadores(as) – e também inclui policiais aposentados. O formulário contempla questões sobre o perfil das vítimas, frequência e tipo de assédio, além da relação hierárquica entre os envolvidos. Há também espaço para relatos espontâneos, que servirão para aprofundar a compreensão sobre o impacto desses episódios na saúde física e mental dos servidores.

Adoecimento e cultura de silêncio
Estudos nacionais já indicam que o ambiente da Segurança Pública é um dos mais suscetíveis ao adoecimento mental de seus profissionais. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de policiais civis e militares que morreram por suicídio em 2023 superou as mortes registradas em confrontos diretos. Casos como o da escrivã Rafaela Drumond, que tirou a própria vida após sofrer assédio de um colega, colocam em evidência a gravidade do problema e a necessidade de medidas institucionais para acolher e proteger os servidores.

Para Back, a estrutura de funcionamento da Polícia Civil contribui para o agravamento desses quadros. “A polícia é, junto com o Judiciário, uma das instituições mais hierarquizadas do país. E, porque não dizer, autoritária. Essa cultura verticalizada acaba abrindo espaço para práticas abusivas que se naturalizam e que silenciam as vítimas”, aponta.
A dirigente lembra que o próprio estatuto da Polícia Civil (Lei 7.366), que rege as relações funcionais dentro da instituição, é anterior à Constituição de 1988. “Isso significa que as relações de trabalho dentro da polícia ainda são pautadas por uma lógica anterior ao processo de redemocratização do país. Precisamos repensar essa estrutura, atualizar as normas internas e democratizar o funcionamento da instituição para garantir um ambiente de trabalho saudável”, defende.
Subnotificação e confiança
Um dos desafios da pesquisa será superar a barreira da subnotificação. Segundo a Ugeirm, muitos policiais deixam de registrar denúncias formais por receio de retaliações, isolamento nas equipes ou transferência compulsória.
“Hoje, na maioria dos casos, quando há uma denúncia de assédio, a solução adotada é transferir a vítima. O assediador continua no mesmo local, sem qualquer consequência. Isso reforça o medo e o silêncio, e precisa mudar urgentemente”, pontua Back.
Para garantir a segurança dos participantes, a dirigente destaca que não haverá qualquer interferência da administração da Polícia Civil no processo. “O primeiro passo é deixar claro que essa pesquisa é uma iniciativa do sindicato, totalmente independente da chefia da instituição. O segundo é garantir que os dados serão mantidos em sigilo absoluto. Nenhuma informação pessoal será coletada ou divulgada”, assegura.

Propostas e próximos passos
Com base nos dados levantados, a Ugeirm pretende elaborar um conjunto de propostas para enfrentar o problema de forma estruturada. A sindicalista afirma que a criação de protocolos específicos de atendimento às vítimas será uma prioridade.
“Precisamos de um protocolo institucional que proteja os(as) servidores(as) que denunciam assédio. Isso inclui desde acolhimento psicológico até garantias funcionais para que a vítima não seja penalizada. Também defendemos a criação de uma ouvidoria especializada dentro da Polícia Civil para receber e encaminhar esses casos com seriedade”, explica.
A dirigente ressalta que o levantamento é apenas o início de um processo mais amplo de escuta e transformação institucional. “Enfrentar o assédio é uma questão de saúde, dignidade e sobrevivência. A pesquisa é o primeiro passo de uma estratégia mais longa, que envolve escuta, acolhimento e construção coletiva de propostas. O objetivo final é garantir ambientes de trabalho mais seguros, humanos e respeitosos para todos os profissionais da Segurança Pública”, afirma.
Casos recentes e contexto institucional
A preocupação com o tema se insere também em um contexto mais amplo de denúncias dentro da própria cúpula da Polícia Civil. Em 2021, o então chefe da corporação no estado foi investigado por condutas consideradas abusivas, o que expôs os limites da estrutura atual para lidar com esse tipo de situação. Embora o caso tenha ganhado repercussão pública, nenhuma mudança estrutural significativa foi implementada até o momento.
Para Back, a transformação precisa começar pela escuta. “A gente só vai conseguir mudar essa realidade se começar ouvindo quem está dentro dela. Essa pesquisa é uma oportunidade de dar voz a essas pessoas, que muitas vezes estão sofrendo em silêncio”, conclui.
