Ouça a Rádio BdF

Polícia manda mais que governador no Brasil, diz especialista sobre PEC da Segurança Pública

Antropóloga critica texto aprovado na CCJ e diz que ele fortalece poderes de corporações armadas à revelia da democracia

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Segurança Pública, aprovada nesta terça-feira (15) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, escancara um problema estrutural no Brasil: a ausência de controle democrático sobre as forças policiais. A afirmação é de Jacqueline Muniz, antropóloga, cientista política e especialista em segurança pública, entrevistada no podcast Três por Quatro, do Brasil de Fato.

Para ela, a PEC repete e aprofunda os erros da Constituição de 1988 ao institucionalizar privilégios e lógicas corporativistas que mantêm as polícias como “espadas autonomizadas”. “Se a espada é forte demais, ela te dá um golpe, senta na cadeira e governa em seu lugar. Se é fraca demais, vira milícia”, diz Muniz. “O problema é que hoje a polícia é mais forte do que o governador, o presidente da República e o prefeito”, resume.

Segundo a especialista, a PEC não estabelece dispositivos de mando ou coordenação entre os entes federativos (União, estados e municípios), o que provoca “bateção de cabeça”, conflitos de competência e um sistema de segurança que responde mais às corporações do que à sociedade.

“O governador fica subordinado à polícia. Ele vira garoto-propaganda, ventríloquo, boneco de posto que abana os braços conforme o vento da fabricação do temor da crise da segurança pública”, afirma. “Não adianta se o governo é de esquerda, de direita, de centro ou de lado. A política de segurança será a política corporativista da polícia”, acrescenta.

‘Lambança na política’

A proposta em debate no Congresso, enviada pelo governo Lula (PT), será analisada em comissão especial após o recesso parlamentar. Muniz a caracteriza como uma “lambança política”.

“O texto é mal escrito do ponto de vista jurídico e intencionalmente ambíguo para viabilizar negociatas de fundo de quintal”, afirma. Ela aponta que a PEC pontifica na Constituição a autonomia das polícias, fortalecendo um modelo autoritário sob a falsa aparência de valor democrático.

A especialista também critica a confusão entre segurança pública e polícia. Para Muniz, o projeto aceita os “lobbies dos grupos corporativistas de dentro das organizações de força” e confunde segurança pública com polícia. Em vez de discutir competências e governabilidade, afirma, o texto constitucional se ocupa de definir estruturas, como “o desenho do posto de saúde ou do hospital”.

Ela alerta ainda para uso político do medo. “A insegurança é um projeto de poder que dá voto, porque o medo faz cada um de nós abrir mão das garantias individuais e votar no primeiro maluco que diz que vai responder no imediato”, analisa.

Além disso, Muniz chama a atenção para a prática de subordinar políticas sociais a lógicas de segurança no Brasil. Na sua avaliação, em vez de o Estado assumir o controle sobre as forças policiais, acaba “securitizando as políticas sociais”, aparelhando cultura, educação e saúde com o objetivo de prevenir o crime. “Nada mais autoritário, nada mais tutelar”, critica. De acordo com ela, esse tipo de estratégia vem da “teoria da defesa social”, que “constrói o inimigo interno” e subordina os direitos universais a lógicas coercitivas.

A antropóloga defende que uma reforma democrática da segurança pública deve partir do controle civil sobre as organizações armadas e do fortalecimento da capacidade de comando dos governos eleitos. “Se quisermos brincar de democracia é para valer. A primeira dimensão da democracia para garantir governos legitimamente eleitos, seja de esquerda ou de direita, é o controle das espadas. Coisa que no Brasil virou descontrole”, conclui.

O videocast Três Por Quatro vai ao ar toda quinta-feira, às 11h ao vivo no YouTube e nas principais plataformas de podcasts, como o Spotify.

Veja mais