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‘Achava que a ABL não era um lugar para nós’, diz Ana Maria Gonçalves, mais nova imortal

Primeira mulher negra a integrar a Academia Brasileira de Letras fala sobre língua portuguesa e obra 'Um defeito de cor'

Imortal é quem deixa uma marca que o tempo não apaga. E Um defeito de cor já era imortal antes mesmo de Ana Maria Gonçalves ocupar uma das 40 cadeiras da Academia Brasileira de Letras (ABL). Inspirado em Luísa Marrinha e Luís Gama, o romance reescreve o imaginário da diáspora negra no Brasil pelo olhar de Kehinde, mulher africana escravizada que conquista a liberdade e parte em busca do filho perdido. Publicado em 2006, o livro se tornou um marco da literatura brasileira e, agora, leva sua autora ao centro de uma conquista inédita.

Ana Maria Gonçalves é a primeira mulher negra eleita para a ABL em 128 anos de história. Uma chegada histórica e, ao mesmo tempo, solitária. “Eu sou a 13ª mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras. Nessa conjuntura, seremos seis entre 40. O que continua sendo muito pouco ainda. E quando pensamos na questão do recorte racial, é uma defasagem maior ainda. Eu sou a primeira mulher negra e a quarta pessoa negra a ser eleita para a academia”, pontua a escritora ao BdF Entrevista, da Rádio Brasil de Fato.

A presença negra que fundou a casa com Machado de Assis, primeiro presidente da ABL, ainda em 1897, permaneceu por décadas como exceção. Antes de Ana, apenas Gilberto Gil, Domício Proença Filho e o próprio Machado ocuparam as cadeiras da academia. “Durante até bem pouco tempo eu achava que não era um lugar para mim, um lugar para nós”, admite.

Segundo a escritora, a decisão de se candidatar veio de forma rápida, mas amadurecida por décadas de exclusão. “A candidatura da Conceição [Evaristo] foi uma que fez com que não só a sociedade brasileira, mas a própria academia se olhasse no espelho e visse a sua própria falta”, lembra Ana. “Espero que a minha eleição abra portas para outras mulheres e para outros escritores e escritoras negras que, como eu, achavam que também não era para eles”, torce.

“Quero produzir presenças”

Com uma trajetória marcada por pioneirismos, Ana Maria Gonçalves diz que deseja usar sua presença para gerar outras. “Eu acho que uma das coisas que eu vou querer trabalhar lá dentro é essa questão de ter sido a primeira, mas não ser a única. Temos que parar de nos contentarmos com a representatividade. Eu quero produzir presenças”, afirma.

Para ela, a experiência de ser “a única” em espaços de poder e prestígio é constante, e não deveria mais ser. “Esse é um processo que acaba sendo extremamente solitário e, ao mesmo tempo, uma responsabilidade muito grande, porque nós não formamos um grupo hegemônico. Eu tenho estilo, uma história e interesses completamente diferentes de outros escritores e escritoras negras que estão produzindo hoje no Brasil”, observa.

Na nova função, Gonçalves assume a cadeira 33, que pertenceu ao professor Evanildo Bechara, um respeitado filólogo brasileiro. “É uma honra e, ao mesmo tempo, uma grande responsabilidade estar ali ocupando essa cadeira. Estou recebendo um carinho muito grande de muita gente que fala há quanto tempo a gente já devia estar ocupando esse lugar com outros e outras escritores que vieram antes de mim”, relata.

Qual língua a academia fala?

Além do marco simbólico, a eleição de Ana Maria Gonçalves aponta também para um debate profundo sobre o papel da ABL: zelar pela língua portuguesa, mas que língua é essa? “Qual é o português que a academia fala? Com quem que a academia fala quando ela fala um português?”, provoca Gonçalves. “Ser poliglota em português, por exemplo, é entender toda a formação que a língua portuguesa teve aqui no Brasil com a influência de línguas indígenas e africanas. Sem elas, com certeza não falaríamos do modo que a falamos hoje”, destaca.

Para ela, sua presença e a de nomes como Ailton Krenak mostram essa transformação. “Eu estou entrando agora, estou começando. Eu acho que precisa muito ainda para eu entender como a academia funciona, como dá para atuar institucionalmente de dentro para encantar esses ‘portugueses’, e principalmente o ‘pretuguês’, como Lélia Gonzalez nos ensinou”, fala. O termo remete à valorização da herança africana na construção da língua falada no Brasil.

Um defeito de cor e a escuta coletiva

Lançada em 2006, a obra mais conhecida de Ana Maria Gonçalves, Um defeito de cor, virou samba-enredo, peça, exposição e foi relida incontáveis vezes. “Eu falo que existem tantos livros quanto são os seus leitores”, analisa. A escritora revela que ouve relatos de leituras que a surpreendem. “Muitas coisas eu realmente não tinha escrito, mas a pessoa tinha lido. E se ela leu, está lá. No livro dela, isso está. A leitura que fazemos tem muito a ver com o momento de vida, a experiência, a pele que vestimos no mundo”, explica.

Apesar de retratar um período histórico, a atualidade da obra ainda comove. “A população negra do país ainda continua vivendo e tendo conhecimento de vivências muito próximas ou, se não, em alguns casos, até piores das situações que eu narro no livro sobre o período da escravidão”, lamenta. Kehinde, personagem central do romance, ecoa na vida da autora. “Kehinde sou eu também”, afirma. E lembra a epígrafe presente no livro, proveniente de um ditado iorubá: “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje.”

De volta aos arquivos

Agora, Ana se prepara para a posse e planeja suas primeiras incursões na academia. “Eu estou animadíssima, estou querendo muito começar a trabalhar lá dentro”, celebra. “Estou muito feliz de ir para os arquivos. Ver, entender a biblioteca da Academia Brasileira de Letras, entender os arquivos, entender as reuniões.” Além da língua, ela quer estudar a história da própria casa, seus fundadores, os abolicionistas, e os momentos em que a instituição “pode ter falhado com outras populações”.

Embora ainda evite indicar quem gostaria de ver ao seu lado na ABL, “para não deixar ninguém de fora”, Ana reconhece que seu ingresso abre portas. “Agora entendemos que também precisamos reivindicar esses espaços. Que mais mulheres continuem se candidatando, que mais pessoas negras continuem se candidatando para vermos se terminamos com essa solidão de únicos e únicas nesse espaço”, clama.

Para ouvir e assistir

BdF Entrevista vai ao ar de segunda a sexta-feira, sempre às 21h, na Rádio Brasil de Fato98.9 FM na Grande São Paulo. No YouTube do Brasil de Fato o programa é veiculado às 19h.

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