Na sanha de achar a bala de prata para frear o aumento exponencial de sinistros de trânsito envolvendo motociclistas e reconquistar o coração da classe C, o ministro dos Transportes, Renan Filho (MDB), anunciou que está na mesa do presidente Lula uma portaria que vai tornar facultativa a frequência em autoescolas para obter a Carteira de Nacional de Habilitação (CNH).
Isso mesmo: os centros de formação de condutores e instrutores que se cuidem, pois suas atividades estão virtualmente com os dias contados. Poderão ser substituídos pelo pai, mãe, irmão ou colega que se disporem a ensinar os macetes do volante ou do guidão.
A proposta não é novidade. O setor inteiro vem trabalhando com essa ameaça desde que o ex-presidente inelegível tratou desse mesmo assunto numa Iive em 2019. Acabar com a autoescola é pauta da direita neoliberal e anarcocapitalista, e encontra semelhanças na flexibilização do direito ambiental proposta pelo PL da Devastação ou no relaxamento para compra de armas de fogo também levada à cabo no governo anterior.
A proposta é tão vil quanto aquela que acabou com o seguro obrigatório DPVAT, eliminou os radares móveis em rodovias federais e quase conseguiu retirar a obrigação do uso da cadeirinha para crianças andarem em automóveis.
Coincidentemente, a ex-senadora Kátia Motosserra Abreu (PP-TO) e o atual deputado federal Kim Kataguiri (União-SP), ambos bem de direita, propuseram projetos de lei para esse fim.
Alegam que a reserva de mercado impede o crescimento econômico do indivíduo, sobretudo aqueles mais pobres que querem tornar-se empreendedores. Em 2019, a senadora, inclusive, propôs que a CNH fosse totalmente grátis, de modo a criar-se uma pátria de habilitados já que, devido aos altos custos, 84 milhões de brasileiros possuíam, à época, o direito à permissão, mas não o faziam por não ter dinheiro para tal.
Sabedor do assunto, Lula já prometeu publicamente uma espécie de Minha CNH Minha Vida para agraciar jovens em vulnerabilidade com a gratuidade ao documento, de modo que tenham mais oportunidade de ganhar a vida com serviço de entregas.
Ele também já anunciou programa de crédito para a compra de motocicletas zero quilômetro incluindo no mesmo pacote o financiamento do capacete. Nas pequenas cidades do Brasil, principalmente no Nordeste, a moto virou sonho de consumo, mas ninguém quer gastar mais dinheiro com o equipamento de segurança.
Quem está gostando muito são as fábricas de motocicletas e as empresas que detém os aplicativos de transportes e entregas. Mais demanda de produção para o primeiro, mais oferta de mão de obra para a segunda.
Do outro lado, quem fica pressionado é o SUS que gastou R$ 450 milhões em 2024 só com essas lesões, que são 100% evitáveis, pois é só não andar de moto ou andar em baixa velocidade que ninguém no Brasil vai se machucar com ela.
O dinheiro seria muito melhor aproveitado nas pesquisas da cura do câncer ou na ampliação da vacinação contra a dengue, entre outros. E liberaria os 60% dos leitos de UTI que são ocupados por quem se machucou no trânsito, tornando o Brasil território livre de acidente de trânsito. Olha só que glória.
Particularmente, fico muito preocupado com o resultado dessa flexibilização no processo de obtenção da CNH para a minha própria segurança no trânsito.
Para nós que pedalamos e caminhamos, a tragédia é realidade, pois o crescimento da circulação de motos sem uma fiscalização que faça os condutores respeitarem limites de velocidade e demais regras também colocam o veículo na liderança de colisões, choques e atropelamentos no trânsito.
Aqui em São Paulo, por exemplo, e principalmente nas periferias, motociclistas invadem ciclovias e ciclofaixas e faixas de pedestres colocando todas nós em iminente perigo.
O atual posicionamento do Estado brasileiro nos coloca na vanguarda do atraso em termos de adequação à Visão Zero, estratégia de segurança viária que visa eliminar todas as mortes e ferimentos graves causados por acidentes de trânsito. Ao invés de limitar o uso desse veículo mortal que é a moto, estimula, sem contrapartida de obrigar, no mínimo, que fabricantes limitem a velocidade máxima.
No longo prazo, além de aumentar a massa de gente amputada e de cadáveres, é iminente que o país não vai cumprir nem com o compromisso de reduzir pela metade os índices de óbitos de trânsito até 2030, nem de aumentar a participação da mobilidade ativa e do transporte público como parte do plano de redução de poluição das cidades, desenhado pelo Plano Clima.
Ao contrário. Com a massificação no uso das motociclistas, as cidades brasileiras ficarão mais longe de se tornarem Amsterdam e Copenhagen e mais perto de Hanói, Kuala Lumpur e Bangkok, capitais do Vietnam, Malásia e Tailândia, respectivamente.
Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.