A luta de classes é uma luta real, material e concreta. Não é mera especulação filosófica, uma luta abstrata ou até mesmo um combate simbólico, como querem alguns autores. É uma luta concreta, real e cotidiana. Dentro dessa luta, cada classe possui suas armas de combate e enfrentamento. A classe capitalista possui todos os meios de subsistência, as ferramentas de produção, o sistema de crédito, os meios de comunicação, o capital que financia parlamentares e o domínio geral sobre o Estado e a política. A burguesia dispõe de todo o aparato econômico, político e ideológico. São suas terras, seus latifúndios, suas indústrias, seus bancos, suas emissoras de televisão e rádio, seu capital político e econômico.
Os trabalhadores, por outro lado, nada possuem além de sua própria força de trabalho. [Karl] Marx já alertava que, para a existência das relações de produção tipicamente capitalistas, “é preciso que duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias se defrontem e estabeleçam contato; de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que buscam valorizar a quantia de valor de que dispõem por meio da compra de força de trabalho alheia; de outro, trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, por conseguinte, vendedores de trabalho. Trabalhadores livres no duplo sentido de que nem integram diretamente os meios de produção, como os escravos, servos etc., nem lhes pertencem os meios de produção, como no caso, por exemplo, do camponês que trabalha por sua própria conta etc., mas estão, antes, livres e desvinculados desses meios de produção. Com essa polarização do mercado estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista. A relação capitalista pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho”.

Marx comenta que por volta do fim do século XIV e início do século XV, os produtores camponeses foram brutalmente despojados de suas terras e dos meios de produção, tendo suas terras invadidas e desapropriadas para o cultivo de lã. “Os trabalhadores foram violentamente arrancados de seu vínculo com a terra e seu modelo de vida camponês. Esses recém-libertados só se convertem em vendedores de si mesmos depois de lhes terem sido roubados todos os seus meios de produção, assim como todas as garantias de sua existência que as velhas instituições feudais lhes ofereciam. E a história dessa expropriação está gravada nos anais (registros) da humanidade com traços de sangue e fogo.”
Esse movimento histórico demonstra que, logo que foram desapropriados e expulsos de suas próprias terras, os camponeses foram disciplinados, por meio do chicote e da tortura, a se submeterem a uma nova disciplina de trabalho assalariado, de subordinação, desamparo, suor e lágrimas.
Vantagem numérica
Os trabalhadores do campo, logo que convertidos em trabalhadores assalariados e subordinados a um capitalista comprador de sua mão de obra, se perceberam como sujeitos que compartilham uma dor em comum e um objetivo conjunto. O castigo do trabalho assalariado, mal remunerado e superexplorado, e o objetivo de melhores condições de vida, de menos trabalho e mais tempo de vida. Mas desde que passaram a formar uma classe de assalariados, os trabalhadores logo foram punidos com a criminalização de toda forma de coalizão e organização proletária. Pelo menos desde o século XIV até 1825, na Inglaterra, os trabalhadores foram impedidos de se organizarem, sob pena de prisão, tortura e execução. Esse movimento histórico põe em evidência que as classes dominantes sempre estiveram organizadas para maximizar suas riquezas às custas do suor e sangue dos trabalhadores.

E essa é uma questão central: a única vantagem dos trabalhadores na luta de classes é a vantagem numérica. Existimos aos montes, aos milhões. São homens e mulheres que diariamente vendem mão de obra em troca de salário. Estamos nas lojas, nos supermercados, nos shoppings, nos escritórios. Não possuímos os meios de produção e as ferramentas que possibilitam o trabalho, pois os meios de subsistência nos foram arrancados. Não possuímos os bancos, os meios de comunicação, tampouco a televisão ou a rádio. Mas possuímos uns aos outros, e essa vantagem numérica ninguém nos arranca. Basta o esforço coletivo de milhões de brasileiros e em pouquíssimo tempo não haveria mais ninguém dormindo nas calçadas, sem teto, pedindo esmola. Nenhuma criança com desnutrição, sem saneamento básico e fora da escola. Nenhum adulto vendendo a própria alma para pagar as contas.
Diferente dos russos e chineses, em que seus países eram profundamente pobres em recursos, o Brasil é um país extremamente rico. Dispomos de todos os recursos naturais. Temos a água, os minérios, as gigantescas proporções de terra e um povo trabalhador. Poder nenhum é capaz de frear a luta organizada dos trabalhadores.
Arma ideológica
Uma das maiores armas da burguesia na luta de classes é uma arma ideológica fundamental: o neoliberalismo. A mentalidade neoliberal é fabricada justamente com esse objetivo último de desarmar os trabalhadores por meio da dispersão e do distanciamento dos indivíduos. A ideologia neoliberal, antes de ser um sistema econômico, uma ética individualista ou mesmo uma “nova razão do mundo”, é sobretudo uma forma de dispersar, atomizar, capilarizar, segregar e individualizar cada trabalhador, o convertendo em pequeno empresário, um prestador de serviços. A ideologia neoliberal produz um sujeito que jamais se reconhece como pertencente a uma classe de pessoas que possuem interesses em comum, os quais são irremediavelmente antagônicos aos interesses de uma outra classe.
O cenário brasileiro do começo do século XXI é de uma dominação ideológica neoliberal extrema e violenta. Os trabalhadores do comércio, dos supermercados, os motoristas de aplicativo, os entregadores de comida, estão todos violentamente dominados pela ideologia egoísta do individualismo, do empreendedorismo e da busca individual pela riqueza.
Há poucas décadas os trabalhadores no Brasil moviam greves com 300 mil, 600 e 700 mil pessoas. No período entre 1950 e 1980 surgia a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra(MST), o movimento grevista se expandia e a luta de classes se inflamava no palco da sociedade brasileira. Os sindicatos, como um contraponto ao poder do capital e uma luta organizada dos operários, representam uma conquista inquestionável dos trabalhadores. Seu desmantelamento é outra façanha da classe dominante brasileira na tentativa de separar os trabalhadores uns dos outros.
Contudo, entre 1960 e os anos 2000 houve uma ruptura profunda na ideologia dominante brasileira. O movimento trabalhista sucumbe como um horizonte de lutas e o neoliberalismo ocupa esse vazio. Hoje sabemos muito bem quem é a classe dominante, a elite dirigente e controladora. É o agronegócio, os bancos, é a JBS, o Itaú, a Suzano e tantas outras. A classe trabalhadora, contudo, parece que desapareceu. Tudo o que se vê são indivíduos atomizados, capilarizados, distanciados, que não se identificam e não compartilham uma sina comum. Todos eles internalizaram uma ideologia do merecimento, do empreendedorismo, do individualismo. Os trabalhadores foram neutralizados pelo golpe militar perpetrado em abril 1964 e ainda hoje não puderam se reerguer.
Concordo muito com uma frase que li recentemente. “Eles nos impõem ideologias individualistas porque sabem que não podemos vence-los sozinhos”.
* Thiago Palominio é estudante de Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e criador de conteúdo sobre filosofia e política nas redes sociais.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.