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Desafios para a garantia de direitos: medidas socioeducativas, maternidades e ‘novas’ invisibilidades institucionais 

As mães adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa ainda precisam de maior visibilidade desta política

Alice Magalhães* e Natália Bezerra** 

Em 2025, comemoram-se 35 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA. O Estatuto foi criado em 13 de julho de 1990 por meio da Lei nº 8.069, que dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Essa lei é considerada um marco importante para a garantia de direitos de crianças e adolescentes no Brasil. Seu Artigo 2° admite como criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade.  

A infância e adolescência nem sempre foram entendidas como fases do desenvolvimento humano com suas especificidades. Crianças e adolescentes frequentemente tinham responsabilidades e tratamentos de adultos, sem direitos específicos atribuídos a sua condição. É fato que os avanços trazidos pelo ECA são particularmente recentes e estão constantemente em fase de amadurecimento, com lacunas a serem supridas, mas não se pode desconsiderar que essa legislação fomentou o advento de muitas outras normativas transversais voltadas ao tema. 

Após a promulgação da lei, passos foram dados em diversas temáticas de proteção à infância, como a criação do Sistema de Garantia de Direitos (SGD); a expansão de políticas sociais, como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI); a obrigatoriedade da crianção de Conselhos Tutelares; a aprovação de várias leis complementares, dentre tantas outras ações. Mesmo com todos esses passos e o esforço por uma mudança de paradigma entre um “modelo tutelar” presente em legislações anteriores como o Código de Menores e a “proteção integral” do ECA, ainda encontramos muitas desigualdades e fissuras entre as populações mais vulneráveis, como os(as) adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa.  

O Capítulo IV dp ECA dedica especial atenção a esse grupo. Por um longo período da história, o Brasil tratou essas crianças e jovens como objetos de intervenção estatal cujo tratamento se resumia ao controle disciplinar ou ao abandono institucionalizado. Foi a partir do ECA que crianças e adolescentes deixaram de ser denominados menores e passaram a ser nomeados como pessoas em desenvolvimento, o que faz jus à Doutrina da Proteção Integral. 

Para muitos estudiosos e estudiosas, ainda que tenha ocorrido essa significativa mudança no âmbito do discurso e das práticas, existe ainda a permanência da relação de fiscalização e controle social das leis anteriores. Nesse sentido, apesar de ser um momento para celebrarmos os 35 anos do ECA e seus avanços, é igualmente necessário refletir sobre os desafios que ainda precisam ser enfrentados. A luta em defesa dos direitos de crianças e adolescentes é contínua. Mesmo garantidos em lei, esses direitos precisam ser discutidos, ampliados e reafirmados no nosso cotidiano. 

Especificamente, sobre a responsabilização de adolescentes e jovens que cometem atos infracionais, tidos como análogos a crimes, o ECA discorreu, pela primeira vez, acerca das medidas socioeducativas. Os artigos 103 à 128 definem as medidas socioeducativas como resposta a atos infracionais cometidos por adolescentes. As medidas socioeducativas passariam a ter caráter pedagógico, e não caráter meramente punitivo – isso ao menos no corpo da lei, pois é certo que, desde sua aprovação, o ECA é alvo de críticas devido a sua ineficiência em abordar alguns temas. 

O sistema socioeducativo é regulamentado pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), por meio da Lei 12.594/2012. Existem seis tipos de medidas socioeducativas no Brasil, sendo elas: Advertência, Obrigação de reparar o dano, Prestação de Serviço à Comunidade (PSC). Liberdade Assistida (LA), Semiliberdade e Internação. 

Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, por meio da Pesquisa Nacional de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto, realizada entre fevereiro e março de 2018, o Brasil possuía na época cerca de 117 mil adolescentes e jovens em cumprimento de Medidas Socioeducativas de Liberdade Assistida e/ou Prestação de Serviços à Comunidade. Esse quantitativo representa 82% de todas as medidas socioeducativas aplicadas no Brasil, estando as medidas de semiliberdade e internação compreendidas nos demais 28%. 

Dados mais recentes do Levantamento Nacional do Sinase, de 2024, focados em adolescentes em restrição e privação de liberdade, registraram cerca de 12 mil nesta situação em todo país. A pesquisa apresenta uma série de dados sobre o perfil socioeconômico dos adolescentes. E indica, por exemplo, sobre o marcador social de cor/raça/etnia, um registro de 54,8% de adolescentes autodeclarados pardos(as), 17,2% pretos(as), 24,3% brancos(as), 0,5% indígenas e 0,2% amarelos(as). Estudos acadêmicos e relatórios mostram que adolescentes negros e de territórios pobres constituem a maioria dos indicadores do sistema socioeducativo o fenômeno é analisado como resultado de desigualdade socioeconômica, proeminência de policiamento ostensivo em territórios populares e seletividade penal. 

Trajetórias criminalizadas 

Um ponto importante a ser levantado quando olhamos para essas pesquisas diz respeito a sujeição criminal a qual estão submetidos os adolescentes negros. Essa população é alvo da política de privação e restrição de liberdade e essa lógica se retroalimenta uma vez que têm suas trajetórias constantemente criminalizadas.  

O acesso à educação de qualidade e outros direitos muitas vezes são apontados em discursos que apresentam “a educação como salvação”. No entanto, vale ressaltar que se por um lado o acesso à educação e a outros direitos fundamentais para o desenvolvimento humano podem ser caminhos para a diminuição das desigualdades socioeconômicas, por outro pode ajudar a reforçar o discurso que criminaliza a pobreza: como se pessoas ricas que tiveram acesso aos melhores sistemas de ensino e saúde não pudessem cometer crimes ou, no caso dos adolescentes, atos infracionais.  

O levantamento do ano passado do Sinase também expõe a pesquisa do Conselho Naciona de Justiça (CNJ), intitulada “Redução de adolescentes em medidas socioeducativas no Brasil (2013-2022): condicionantes e percepções”, que aponta uma redução na quantidade de adolescentes em medidas socioeducativas de privação e restrição de liberdade em todo Brasil. Pesquisas em desenvolvimento  nas áreas das Ciências Humanas estão se debruçando sobre essa redução brusca para melhor entendimento de suas razões. 

Relatórios da UNICEF e de organizações de direitos da infância mostram que, nos últimos anos, milhares de crianças e adolescentes foram mortos de forma violenta no Brasil e em 2023 quase 1 em cada 5 crianças e adolescentes mortos foi vítima de ação policial, o que conecta diretamente política de segurança pública, pobreza e risco para jovens em territórios periféricos. Esse dado é importante para discutir a fronteira entre as políticas de segurança e a responsabilização de adolescentes. 

Novamente, apesar da mudança normativa, até mesmo agentes do Estado que trabalham com a execução de medidas socioeducativas reforçam a percepção de que, em sua maioria, são adolescentes empobrecidos que cometem atos infracionais, associando a pobreza à criminalidade e colocando como imperativo a diminuição da pobreza através de oferecimento de oportunidades ou de possibilidades de ascensão social. 

Especificamente sobre a infância e juventude em cumprimento de medida socioeducativa e o gênero feminino, as meninas atendidas pelo socioeducativo, como um todo, ainda precisam de maior visibilidade desta política. Conforme apontado por diversas pesquisadoras da área, o público feminino ainda encontra-se inserido em um sistema majoritariamente masculino, onde suas especificidades, como maternidades, direitos sexuais e reprodutivos, questões de saúde, dentre outras, precisam receber mais atenção. Integram o grupo de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, as mães adolescentes, as quais precisam ter garantidos uma série de direitos e proteções do Estado enquanto sujeitas de direito.  

As mães adolescentes no Sistema Socioeducativo 

Especificamente sobre as mães adolescentes que cumprem uma medida socioeducativa, tanto o ECA quanto o Sinase, foram pouco específicos quando mencionam as maternidades de adolescentes ou de jovens em conflito com a lei, especialmente, em relação aquelas que cumprem uma medida socioeducativa em privação de liberdade. Há diretrizes que resvalam indiretamente nos temas da gravidez e maternidades, basicamente no que se refere ao direito de aleitamento e de visitas dentro das unidades socioeducativas. Considera-se, então, que tais legislações não cobriram outras temáticas que, aos poucos, foram se mostrando importantes na discussão dos direitos de tal grupo social, como os cuidados com o vínculo mãe e filho, os efeitos gerados a partir do cruzamento de medidas socioeducativa e maternidades, a oferta de apoio psicossocial para as mães, o acesso a creches para os filhos, dentre tantas outras questões que, por não se falar nelas, acabam por resultar em “novas” invisibilidades institucionais. 

Recentemente, o tema das maternidades em contextos de privação de liberdade tem ganhado notoriedade, conforme aponta  a criação de uma série de normativas que recomendam a não aplicação da prisão em meio fechado (ou internação) para as mulheres que são mães e que atendam certos critérios e, de forma análoga, também são aplicadas às adolescentes mães no socioeducativo – cito algumas normativas correlatas como o Marco Legal da Primeira Infância – Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016; o Habeas Corpus nº 143.641/2018, que disciplinou a concessão da prisão domiciliar para todas as mulheres privadas de liberdade, sob certos critérios; resoluções do CNJ e resoluções do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA).  

Em relação à necessidade de deliberação e controle das políticas públicas voltadas para a infância e adolescência, no âmbito federal, criou-se no ano 1991, um mecanismo institucional voltado à efetivação dos direitos previstos no ECA, que é o CONANDA. Em relação às maternidades tratadas acima, este órgão veio reforçar, em especial, por meio da Resolução n. 233/2022, as orientações gerais do Estatuto da Criança e do Adolecente em relação ao direito à saúde de mães e filhos, como o acompanhamento pré-natal por meio do SUS, nutrição adequada e atenção ao parto e puerpério. Entretanto, foi além destes direitos iniciais, e estabeleceu outras garantias protetivas às adolescentes mães inseridas no sistema socioeducativo, como: “alimentação, hidratação e toda a atenção necessária ao desenvolvimento saudável de sua gravidez; a garantia que a situação de privação de liberdade não seja considerada como critérios de análise para a perda ou suspensão do poder familiar, para colocação de filhos em famílias substitutas ou para indução à adoção; cuidado de sua saúde mental dessas mães; atenção às relações familiares; dentre outras medidas”. 

A despeito da criação de toda essas normativas nos últimos anos, levantamentos nacionais feitos por institutos renomados, como o Instituto ALANA, além de extensas pesquisas acadêmicas, têm mostrado fragilidades no cumprimento das garantias dos direitos dessas mães adolescentes, destacando as muitas possibilidades de interpretação das normas, o que faz que seu cumprimento seja dificultado e desigual por todo o país, como apontou a pesquisadora Jalusa Arruda, em um levantamento sobre a aplicação do mencionado HC 143.641/2018, lançado no ano de 2023. Também a nível nacional, o Levantamento do Sinase de 2024, constatou que há em todo o sistema socioeducativo 10,9% das meninas cis com filhos, além da presença de gestantes e lactantes (Brasil, 2024) cumprindo medida socioeducativa de restrição ou privação de liberdade, o que reforça a necessidade de políticas socioeducativas que olhem para estas maternidades. 

Assim, vemos que 35 anos após a importante instituição do ECA e o advento de outras legislações impulsionadas por ele (algo importante a ser evidenciado), ainda esbarramos em desconhecimento da legislação, em resistências institucionais, em lacunas nos dados sociodemográficos, exemplos que impactam o atingimento e a proteção dos direitos mínimos destinados às mães adolescentes no país. Isso porque não adentramos outros problemas sociais, que tendem a acompanhar tais maternidades, como a inserção dessas jovens no tráfico de drogas muitas vezes envolvidas por seus parceiros ou a violência contra a mulher, temáticas presentes nos contextos sociais destas meninas.  

Por fim, o ECA é um propulsor de diversas conquistas no direito das infância e juventudes no país, mas também não deixa de ser um estatuto  que nasceu nos anos 90 e que carece de sempre se manter atualizado e reativo a persistentes lacunas ou a novos fenômenos sobre o tema, como o mundo digital e as infâncias. É necessário repensarmos a partir do olhar interseccional e, no caso das mães adolescentes, buscar garantir políticas públicas que considerem suas experiências e subjetividades.  

* Alice Magalhães é doutoranda em Antropologia (PPGA/UFF) e integrante da REMA. Desenvolveu pesquisas sobre o sistema socioeducativo e educação. 

** Natália Bezerra é doutora em Antropologia Social (PPGAS/UnB) e e integrante da REMA. Desenvolve pesquisas sobre sistema de justiça juvenil, gênero, maternidades e políticas públicas.  

***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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