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A coluna tem o objetivo de realizar uma análise precisa por uma mídia ética, humanizada e sem violações dos direitos humanos. Autora: Mabel Dias é jornalista, associada ao Intervozes – Coletivo ...ver mais

Mulher, seus passos podem estar sendo vigiados: pesquisa do IP.rec analisa novas formas de violência contra as mulheres no ambiente digital

Além do uso de aplicativos espiões, como os spywares, a pesquisa também identificou outras práticas de violência de gênero facilitadas por tecnologias

Por Mabel Dias*

Em um dos meus artigos, publicados nesta coluna, analisei letras de algumas músicas populares brasileiras, que retratam as mulheres de maneira estereotipada e que reforçam a cultura machista da sociedade brasileira. Essa semana, durante uma viagem no transporte por aplicativo, ouvi no rádio mais uma dessas “músicas”, que reforçam, simbolicamente, a violência contra as mulheres. Quem Ama, Cuida é cantada por Flávio Leandro e, no seu refrão, diz assim: “Mas não desligue o celular, eu vou te rastrear, porque quem ama, cuida.”

No entanto, isso não tem nada a ver com cuidado, mas sim com controle sobre a vida da mulher e, consequentemente, é uma violência de gênero facilitada por tecnologia, nesse caso, o celular. O Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec) divulgou em seu site a pesquisa Expondo Stalker (ware): um panorama das produções científicas sobre o uso de stalkweware como tecnologia facilitadora de violência de gênero no Brasil, que analisou produções cientificas entre os anos de 2020 e 2025, sobre o uso de aplicativos espiões (spyware) e tecnologias de uso duplo (dual-use apps) como facilitadores da violência de gênero no meio digital. O objetivo da pesquisa do IP.rec é colaborar para diminuir as desigualdades digitais, tornando o ambiente digital um lugar seguro e acolhedor para as mulheres e a população LGBTQIAPN+, os principais grupos atingidos por esse tipo de prática.

O Anuário do Fórum de Segurança Pública 2025 trouxe dados preocupantes do crescimento da violência contra as mulheres no Brasil. E as violências de gênero facilitadas por tecnologia também têm se destacado, como o stalking ou cyberstalking (perseguição virtual), que pode culminar com a perseguição na vida real.

Além do uso de aplicativos espiões, como os spywares, a pesquisa também identificou outras práticas de violência de gênero facilitadas por tecnologias, como o cyberstalking, o stalkerware e o doxxing. O cyberstalking pode ser identificado como a perseguição sistemática da mulher por meios digitais. O stalkerware são softwares antiéticos que permitem o rastreamento e a localização de uma pessoa, acesso a seus arquivos e comunicações, sem o consentimento dela, promovendo, assim, uma vigilância íntima não consensual. O doxxing, por sua vez, consiste na divulgação de informações pessoais, como o local onde a mulher mora ou trabalha.

Lola Aronovich, que é professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), foi uma das vítimas desse tipo de violência de gênero facilitada por tecnologias, por causa de seu ativismo feminista em defesa das mulheres e por denunciar grupos masculinistas presentes na internet e nas plataformas digitais, que propagam misoginia.

Durante a pandemia da Covid-19, o uso dessas tecnologias para fins de violência de gênero teve um aumento expressivo, segundo a pesquisa do IP.rec. Não poder sair de casa para evitar contaminação com o vírus fizeram com que as pessoas passassem a usar com mais frequência aplicativos digitais, que foram apropriados por agressores para cometer abusos e vigilância íntima não consensual. Relatório da empresa Avast mostrou um crescimento de 51% na instalação desses aplicativos durante a quarentena, o que mostrou uma relação entre o isolamento social e o fortalecimento de práticas abusivas facilitadas pela tecnologia.

O estudo do IP.rec identificou ainda nas pesquisas analisadas, os efeitos psicológicos e sociais sobre as mulheres, causados pelo uso da tecnologia como meio para cometer alguma violência. Como sempre, a violência é praticada por parceiros ou ex-parceiros da vítima, que adotam um discurso de cuidado para vigiá-las.

“Esse tipo de controle não depende apenas da ferramenta utilizada, mas da permissividade cultural que ainda associa ciúmes à prova de amor e monitoramento à atenção romântica”, diz um dos trechos do relatório. Nesse caso, os aplicativos digitais tornam-se extensões do poder patriarcal, assim como a música de Flávio Leandro, que reforça essa vigilância não consensual sobre a mulher como se fosse algo do cuidado e não é!

Porém, há mecanismos que podem ajudar as mulheres a identificar se o seu celular ou computador estão contaminados por aplicativos espiões. Para isso, coletivos feministas, o governo federal e até empresas estão agindo para coibir e minimizar os riscos da violência digital contra as mulheres. A Kaspersky, por exemplo, anunciou a criação da ferramenta gratuita TinyCheck, que pode ser utilizada para detectar stalkerware em celulares.

A MariaLab, organização feminista que atua no campo da segurança e do cuidado digital organizou o Mapa do Acolhimento para alertar mulheres sobre o uso de celulares como mecanismo de controle em contextos de violência doméstica. Em 2017, a MariaLab, em parceria com o Cfemea, as Blogueiras Negras e a Universidade Livre Feminista lançaram a Guia Prática de Estratégias e Táticas para a Segurança Digital Feminista que traz dicas de como identificar e como se proteger de violências digitais. Por sua vez, o Ministério das Mulheres lançou a cartilha “Caiu na rede, é crime!”, com informações sobre a divulgação de imagens íntimas sem o consentimento da mulher nas plataformas digitais; e o Instituto de Referência em Internet e Sociedade (Iris) também lançou um material, em formato de fanzines, que investiga o uso dessas tecnologias de vigilância, como stalkerware e spyware, para a prática de violência contra as mulheres. Os zines se transformam em pôsteres, que podem ser impressos e divulgados para difundir a informação que proteja as mulheres de violências digitais.

Todos esses materiais podem ser baixados nestes links:

Guia Prática de Estratégias e Táticas para a Segurança Digital Feminista

Caiu na rede, é crime!

Vaza, stalker

*Mabel Dias é jornalista, mestra em Comunicação pela UFPB, doutoranda em Comunicação pela UFPE, associada ao Coletivo Intervozes, autora do livro A desinformação e a violação aos direitos humanos das mulheres: um estudo de caso do programa Alerta Nacional (editora Arribaçã). Pesquisa gênero, desinformação e violação dos direitos humanos das mulheres na mídia.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.

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