Nos últimos dias, um vídeo viral do influenciador Felipe Bressanim Pereira, o Felca, sacudiu as redes e o Congresso Nacional. Em tom ácido, irônico e direto, ele expôs casos concretos de adultização, erotização e exploração infantil que circulam livremente nas plataformas digitais — desde influenciadores mirins forçados a produzir conteúdo para monetização até a exibição de crianças em contextos de apelo sexual, consumidos por milhares de adultos.
O impacto foi tão grande que, pela primeira vez em muito tempo, o debate sobre regulação das Big Techs entrou na pauta do Parlamento com força. O próprio presidente Lula anunciou que enviará ao Congresso um projeto para estabelecer regras claras e proteger crianças e adolescentes nesse ambiente.
O “efeito Felca” rompeu o bloqueio da comunicação tradicional. Milhões de pessoas que talvez jamais lessem uma reportagem longa sobre o assunto assistiram, comentaram e compartilharam o vídeo. Houve consequências concretas: influenciadores que usavam imagens sexualizadas de crianças já tiveram contas suspensas; outros foram denunciados e respondem a processos.
A reação também veio de onde era previsível: deputados de extrema-direita correram para atacar Felca. É o sintoma mais evidente de que o tema tocou num nervo exposto.
Em Contagem e em várias partes do país, há um segmento político que se apresenta como “protetor da infância”, mas atua criando pânico moral nas redes. Parlamentares e líderes religiosos, como a ex-ministra de Direitos Humanos Damares Alves – exemplo disso foi quando Damares Alves falou durante um culto evangélico em Goiânia no dia 8 de outubro de 2022 que crianças do Arquipélago do Marajó eram prostituídas; a mentira converteu-se em processo do Ministério Público Federal contra a ex-ministra. Damares Alves acusada de prevaricação -, a deputada bolsonarista Bia Kicis – segundo a parlamentar, mentir não poderia ser tratado como “crime” – e o deputado Pastor Sóstenes Cavalcante – líder do PL do estupro -, recorrem a imagens chocantes e discursos religiosos para apresentar a “salvação” das crianças como obra exclusiva da fé e da moral tradicional.
Na prática, reforçam um papel conservador para as mulheres, defendendo que a “proteção” das crianças passa pela volta da mãe ao lar, pelo modelo da “esposa dedicada” e pela criminalização de qualquer política que promova autonomia feminina. Essa narrativa transfere a responsabilidade integral do cuidado às mulheres, desconsiderando a responsabilidade coletiva e estatal, e reforça o machismo estrutural.
Ao mesmo tempo, essa atuação desvia o foco do que realmente ameaça a infância: a ausência de regulação das plataformas digitais, que todos os dias expõem crianças à violência simbólica e real, à erotização precoce e ao aliciamento. Ao atacar a regulação, esses parlamentares defendem, na prática, os interesses das próprias Big Techs — empresas que são aliadas estratégicas na propagação de conteúdos de ódio, fake news e teorias conspiratórias. Esse ecossistema digital não apenas sustenta campanhas políticas da extrema-direita, mas retroalimenta a agenda do medo e do ódio que ela impõe à sociedade: espalha pânico social, reforça preconceitos, estimula a intolerância e mantém o público engajado pelo choque e pela indignação.
Regulamentar as plataformas
Essa “proteção” seletiva e performática não enfrenta o que realmente ameaça as infâncias hoje: o funcionamento descontrolado das redes sociais. É nesse território sem regras que crianças são expostas a conteúdos violentos, submetidas a padrões inalcançáveis de beleza e consumo, alvos de bullying e aliciamento. É também aí que se consolida o trabalho infantil digital: meninas e meninos transformados em produtores de conteúdo, trabalhando longas horas para manter engajamento, sob pressão dos próprios responsáveis — porque cada curtida, cada compartilhamento, se converte em dinheiro.
Os impactos são visíveis. A saúde mental de crianças e adolescentes está em crise: ansiedade, depressão, baixa autoestima, ideações suicidas. Um levantamento da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra que a taxa de suicídio entre jovens cresceu 6% por ano no Brasil entre 2011 e 2022. Esses números superam os da população geral, cuja taxa cresceu 3,7% ao ano.
Entre os fatores de risco, o uso excessivo e não supervisionado das redes aparece como um dos principais. No cenário internacional, pesquisa publicada na revista Nature Human Behavior revelou que adolescentes entre 11 e 19 anos com problemas de saúde mental passam mais tempo nas redes sociais do que aqueles sem quaisquer transtornos.
As próprias plataformas conhecem esses efeitos. Documentos internos revelados no escândalo dos Facebook Papers (2021) mostraram que a empresa sabia que o Instagram aumentava insegurança e distúrbios alimentares entre meninas adolescentes, mas não alterou o algoritmo. O problema não é desconhecimento: é a escolha deliberada de manter um modelo de negócios que lucra com a vulnerabilidade de seus usuários.
Não se trata de proibir a internet ou demonizar a tecnologia. Trata-se de regulamentar as plataformas para que funcionem com responsabilidade, sob regras públicas e transparentes. Hoje, quem regula são as próprias Big Techs, guiadas por interesses comerciais. São elas que decidem o que circula, para quem circula e com qual intensidade. E essa lógica, baseada no lucro, não pode se sobrepor ao bem-estar das pessoas — especialmente das crianças.
Há exemplos de que é possível avançar. A União Europeia aprovou, em 2022, a Lei dos Serviços Digitais (Digital Services Act), que obriga empresas a remover rapidamente conteúdos ilegais, limita publicidade direcionada a menores e exige auditorias independentes sobre os riscos dos algoritmos.
No Reino Unido, entrou em vigor o Online Safety Act, com foco específico na proteção de crianças, impondo multas pesadas a plataformas que não retirarem material nocivo. O Brasil não precisa reinventar a roda — mas precisa agir com a mesma coragem.
Nesse contexto, é fundamental destacar que está em tramitação na Câmara Municipal de Contagem o Projeto de Lei da Educação Midiática e Tecnologias Digitais de autoria do nosso gabinete, que estabelece diretrizes para incluir o letramento midiático nos currículos escolares, formar professores e promover campanhas públicas contra a desinformação.
Inspirado em experiências internacionais de sucesso, como a da Finlândia, o PL reconhece que a proteção da infância passa também pela formação crítica de crianças e adolescentes para identificar conteúdos nocivos, analisar fontes e compreender o funcionamento das plataformas digitais.
Ao preparar a comunidade escolar para lidar com o ambiente informativo atual, a proposta fortalece a capacidade das novas gerações de se protegerem da violência simbólica, do discurso de ódio e da erotização precoce — exatamente os problemas que a ausência de regulação das Big Techs agrava.
A liberdade de expressão, desde sua formulação liberal clássica, é um direito do público: o direito de ter acesso a informações diversas e de qualidade para formar opinião. Quando plataformas trancam usuários em bolhas e priorizam conteúdo extremista e sensacionalista, o que está em risco não é só a infância, mas o próprio debate democrático.
O “efeito Felca” nos lembra que a proteção da infância não pode ser sequestrada por discursos moralistas, religiosos e patriarcais que desviam o foco das causas estruturais. A luta real exige enfrentar o poder das Big Techs, desmontar o modelo que lucra com a vulnerabilidade infantil e construir políticas públicas que garantam, de fato, uma infância protegida, saudável e livre — tanto nas ruas quanto nas redes.
Adriana Souza é militante, mãe, professora de história e vereadora mais votada de Contagem.
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Leia outros artigos de Adriana Souza em sua coluna no Brasil de Fato MG Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal