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ARTivista feminiSta, escritora, poeta e tradutora. Autora dA saliva que umedece, poemariam – um tratado sobre línguas, 2025; Meu último poema 2023; Em breve tudo se desacomodará, 2022; entre outros...ver mais

Continuum lésbico

Estamos em agosto, mês da Visibilidade lésbica, peço licença para falar de mim e minha história, já que no feminiSmo dizemos que o pessoal é político

Estamos em agosto, mês da Visibilidade lésbica, peço licença para falar de mim e minha história, já que no feminiSmo dizemos que o pessoal é político.

Em 1980, a poeta e teórica lésbica feminista Adrienne Rich, publica nos Estados Unidos seu imprescindível texto A heterossexualidade compulsória e existência lésbica, onde já abria a ideia de lesbianismo : “A existência lésbica sugere tanto o fato da presença histórica de lésbicas quanto da nossa criação contínua do significado dessa existência. ”

Este texto maravilhoso foi publicado no Brasil pelA Bolha editora, 2019, e traduzido pela inigualável Angélica Freitas.

Decidi pôr um print aqui por inúmeras razões, todas as sintetizo em por favor, leiam esse texto! E conheçam os livros que A Bolha publica.

Sinto muita pena de que ainda no movimento lésbico leiam tão pouco às nossas antecessoras, que triste que geralmente a lesbianidade seja somente associada a mulher que ama outra mulher. Fico claustrofóbica nesse pequeno quadrado.

Penso na cabeça de Adrienne Rich e de Monique Wittig e as imagino hoje falando em mulheridades, ampliando o conceito, pois eu sinto que aí cabemos também as lésbicas e sapatonas não binárias que, como Wittig dizia, não somos mulheres, mas que nos reconhecemos dentro desse coletivo.

Se se trata de continuar abrindo palavras e conceitos, faz anos que venho reivindicando a volta do termo lesbianISMO. (Nessa coluna falo um pouco disso. ) Ismo de movimento social e polítiko, como anarkismo e feminiSmo. (Também trago este debate no meu romance Em breve tudo se desacomodará, Bestiário, 2022; e no recente livro A saliva que umedece, poemariam – um tratado sobre línguas, Libretos 2025.) Gosto de pensar que possamos ser e estar em movimento também com as nossas cúmplices, não somente com as lésbikas e sapatonas que amam e desejam outras lésbicas, sapatonas, mulheres e mulheridades. Esta ideia também aparece no meu texto Ser lésbica ou lésbika polítika, que já tem uns vinte anos de ter sido escrito e publicado na revista Labrys.

Na década de 1990, quando assumi o compromisso comigo mesma de ser fiel aos meus desejos, comecei juntamente o ativismo, então, o texto de Adrienne, A heterossexualidade compulsória e a existência lésbica, era nossa bíblia. Fico triste quando em 2025 escuto uma dessas mulheres que reduzem o lesbianismo — ou a lesbianidade caberia mais aqui — à única ação de “mulheres que amam mulheres” e diz que não vamos só ficar em círculo conversando entre nós, que há mais que sair ao mundo e mostrar o nosso amor.

Querida, dá vontade de dizer, a gente vem fazendo isso há décadas, né? Audre Lorde, Marisa Fernandes, Monique Wittig, María Luisa Peralta, Gloria Anzaldua, Fabi Tron, Neusa das Dores, Margarita Pisano, Alice Oliveira, Norma Mogrovejo, Zanele Muholi e tantas e tantas sapatonas feministas que pensam, atuam, e escrevem há décadas.

Eu também continuo fazendo a minha parte.

Entre lésbicas e sapatonas feminiStas é muito comum terminar um relacionamento amoroso e continuarmos amigas. Ou seja, nós vamos além do casal, do encerramento de duas sapatonas/lésbikas, nós desafiamos com nossas corpas vivas o CIStema que impõe o amor romântico, nós exploramos outras formas de amar que não se reduzem à genitália, como diz Adrienne Rich. Assim foi como tivemos que ampliar nosso vocabulário.

Muitos anos atrás, com umas amigas e companheiras da corrente do feminismo autônomo : Ochy e Yuderkys, enquanto jantávamos e bebíamos um vinho em Buenos Aires, pensávamos sobre isso. Elas duas próprias tinham sido namoradas e separaram há anos, mas a amizade e cumplicidade segue viva até hoje. Foi assim que entre sorvos de tinto e risadas saiu o termo Núcleo afetivo. Eu, pessoalmente, do pilar destrutivo e violento que compõe a sociedade hétero-patriarcal, não quero nada. Nem o nome. Por isso, anos depois passei de núcleo a núclea. Hoje, se houvesse um termo não binário o preferiria.

Ninguém entra pela porta grande da núclea afetiva, porque, justamente, não temos laços sanguíneos, mas escolhidos.

Minha núclea hoje se compõe por Clarisse, que é minha companheira de vida. Fomos namoradas durante 10 anos e faz 11 que ressignificamos o vínculo, nos separamos e continuamos morando juntas em diferentes cómodos da casa. Também clodet, com quem namorei uns anos depois de ter ressignificado o vínculo com cla, ela mora em Buenos Aires. Esta história aparece empoemada no meu livro Grito de mar. Com elas, tanto o termo de ex, como de amigas, não nos representam, por isso somos núcleaafetiva. Cabe ressaltar que nós pensamos que criamos laços e espaços próprios, mas quem manda no Gatriarcado agora, são oxum e dandara, como em outra época o fizeram a gata cristie e violeta.

Eu não acredito na teoria de que somos nós que escolhemos as nossas famílias sanguíneas. Sinto um arrepio profundo ante essa ideia. Mas afirmo que somos nós que criamos as nossas núcleas afetivas.

Dias atrás, Clarisse viajou a São Paulo para o aniversário de uma prima que mora fora do Brasil. Ser parte da núclea não é excludente dos vínculos sanguíneos.

Fazendo uma síntese, uma vez lá, cla passou mal e teve de ser internada. Como explicar minha desesperação?

Quando eu falo no cotidiano com pessoas que não são muito próximas e tenho que explicar quem é ela, passo de falar de amiga a companheira de vida.

Conversando sobre isso, uma amiga diz que ela tem esposa e tem namorada. Ela faz parte dos grupos de não monogamia, também com Clarisse abraçamos essa luta e escrevemos textos sobre ela. Minha amiga continua, com minha esposa, moramos juntas há anos, dividimos o cotidiano, as contas, os dramas; enquanto que com a namorada, aproxima a mão à boca e simula beijos e carícias.

O que sempre amei do lesbianismo é essa outra possibilidade de poder pensar como queremos ser, estar, amar, nos relacionar. Poder sermos criativas e nós mesmas, mesmes, criarmos as regras e o funcionamento.

Muita gente conhece minha atitude na vida, de ser tão sapa, tão sapa tão, que então, quando digo que moro com uma amiga como se algo não encaixasse. As pessoas olham para mim e sorriem achando que entendem.

Entendem quê?

Eu precisaria explicar? 

Minha amiga insiste em que Clarisse é minha esposa. Mas eu não gosto de trazer termos de fora, sobretudo que esposa em espanhol significa algemas. Isso não falei para ela, porque acho tão bonito como ela utiliza o termo e me faz sorrir, mas para mim não caberia. Mas cabe nela e isso é maravilhoso. Somos múltiplas.

A saúde de Clarisse não é seu forte há muitos anos e já passamos por momentos muito delicados, por isso sempre estou atenta. Depois de não ter respostas às minhas mensagens e ver que o WhatsApp estava online, entrei no seu computador e abri a conversa. Confirmei o que mais temia. A filha da prima aniversariante respondia uma mensagem para alguém, aclarando que não era Clarisse, que ela tinha passado mal e a estavam levando na emergência. Se eu fosse a esposa, teriam me avisado?

Copiei seu número e mandei mensagem desde meu telefone. Felizmente fui muito bem tratada por ela, a gente se viu pessoalmente, uma única vez há 16 anos. Passei a lista de medicamentos junto com os números do médico e da médica que atendem a cla. Essa página está colada na geladeira. Nesses momentos de caos, melhor se encomendar ao cosmos. Ficamos em contato direto até o afilhado de Clarisse — que mora em SP —chegar e não desgrudar dela. Agradeço uma e mil vezes ela não ser uma pessoa preconceituosa, porque nós sabemos o que é estar na pior e que as pessoas te ignorem. E se fosse minha esposa, mesmo que unicamente nesses casos-caos, ajudaria?

Redijo o que vai ser a coluna em um papel. Escrever me ajuda a tirar a dor do corpo, ou, em palavras de Tatiana Salem Levy, “Mais uma vez saio de mim para me tornar espectadora de mim e do mundo…”, no livro Melhor não contar. Enquanto escrevo estas letras, olho mais uma vez o relógio, daqui a pouco viajo a São Paulo. Vim conversando com cla pelo whats, nesses três dias que esteve internada. Na terça-feira à tarde brinquei que já podia sair do hospital. Sua voz, seu tom, já estavam de volta. Ainda estava tudo confuso, pois médicos/as mudavam diariamente. Com tanta tensão, eu não conseguia trabalhar e, além de viver com o celular na mão, ia para a rua fazer coisas. Estou no supermercado comprando castanhas de caju e leio Ganhei alta!!!! Depois te conto mais. Vou pra casa de Rafa. Eu rio e sorrio tudo junto. Acho que também grito. Volto correndo. Converso com ela e decidimos, agora sim, vou viajar aí e voltamos juntas. Meu coração não aguentaria mais uma saída de roteiro em tão poucos dias e eu não vejo a hora de abraçá-la. Brincamos e digo que não vou soltá-la mesmo que me diga que a incomodo.

Mando uma mensagem para sua doutora contando. Ela me diz, Clarisse é forte, eu acrescento, ela é uma gata. A gata mor do gatriarcado, penso e rio comigo. 

*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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