Lideranças populares, professores, representantes de movimentos populares e organizações da sociedade civil se reuniram em Salvador para o lançamento estadual do Relatório Conflitos no Campo Brasil 2024. O documento, produzido pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) desde 1985, traz um levantamento dos principais tipos de conflitos a que os camponeses estão submetidos no país e como se dá a resistência popular diante desse cenário. Um dos destaques é o papel de grupos como o Invasão Zero para o aprofundamento da violência contra comunidades rurais e povos tradicionais no estado.
A apresentação dos resultados aconteceu na última quarta-feira (13), na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-BA), e alertou sobre o alto índice de conflitos no campo que, em 2024, teve o segundo maior número de registros da série histórica, com 2.185 casos no país, atrás apenas do ano de 2023, que contabilizou 2.250.
Para Diana Aguiar, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisadora do Néctar – Ecologia Política e Territorialidades, ao analisar os relatórios anuais, é possível traçar as mudanças da conjuntura rural no Brasil nas suas múltiplas complexidades.

“Os Cadernos de Conflito da CPT conseguem traçar um panorama destas transformações da própria questão agrária no Brasil, pois conseguem adaptar seu processo de documentação ao longo do tempo incluindo novas questões que são indispensáveis para a leitura de cenário, como os conflitos por água, gênero, novos recordes, fogo, agrotóxicos”, destaca.
Além do Néctar, compuseram a mesa do evento integrantes da CPT-BA, OAB-BA, Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR), Ministério Público e o grupo de pesquisa GeografAR/UFBA. O relatório pode ser baixado gratuitamente neste link.
Conflitos na Bahia
De acordo com o documento, a Bahia é o estado que registrou o terceiro maior número de ocorrências em 2024, com 171 conflitos, ficando atrás apenas do Maranhão e do Pará. Desse total, 135 registros foram motivados por conflitos por terra, impactando diretamente mais de 10 mil famílias em território baiano, sobretudo de sem terra, indígenas, quilombolas e camponeses de fundo e fecho de pasto.
“A gente vê que desde o golpe que a Dilma sofreu em 2016, há um fortalecimento das forças fascistas e que interferem diretamente também na violência do campo. A gente vê que essas forças têm ficado mais encorajadas, inclusive, a cometer atos de violência”, aponta Moisés Borges, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
Para João Régis, presidente da AATR, o alto índice de violência na Bahia também se dá pela frágil atuação do poder público. “A omissão do estado da Bahia se revela ao não agir na interrupção de esquemas de grilagem e ao não fiscalizar também os licenciamentos ambientais. Dessa forma, são cúmplices desses conflitos ao permitir que as empresas do agronegócio ajam livremente.”
Invasão Zero
Um dos destaques do relatório é o movimento Invasão Zero. Fundado na Bahia, mas com ações que já chegam em diversos estados, o grupo ruralista ganhou visibilidade a partir de ações violentas contra famílias em ocupações, acampamentos e retomadas de territórios. Além das ações diretas, o documento aponta que a organização, composta por grandes fazendeiros e proprietários de terras, também exerce influência nas casas legislativas, atuando em prol da criminalização dos movimentos sociais e das ações de luta pela terra.
“Entendemos que estão em jogo a expansão do agronegócio, da mineração, dos modelos energéticos em territórios tradicionais. E, para isso, utiliza-se parte da estrutura oficial do Estado, com os licenciamentos e tal, mas parte também se utiliza de um poder paralelo, miliciano, que alguns estados assumem como Invasão Zero, com projetos de leis, com toda a estrutura pública a serviço desse modelo”, explica Cláudio Dourado, agente da CPT-BA.

Um dos casos que o documento associa à atuação do Invasão Zero é o assassinato de Maria Fátima Muniz de Andrade, mais conhecida como Nega Pataxó, em 21 de janeiro de 2024, no sul da Bahia. A liderança do povo Pataxó Hã Hã Hãe foi morta a tiros a mando de um fazendeiro em uma ação contra uma retomada indígena na região. No ataque, o cacique Nailton Muniz Pataxó também foi baleado, mas sobreviveu após cirurgia. Uma mulher indígena teve o braço quebrado e outras pessoas foram hospitalizadas.
No dia 12 de agosto, o Tribunal Regional Federal (TRF), em Brasília (DF), determinou que José Eugênio Fernandes Amoedo, investigado pelo assassinato de Nega Pataxó, vá a júri popular. O jovem de 21 anos foi preso em flagrante após o crime, mas liberado sete meses depois após pagamento de fiança. A defesa ainda pode recorrer da decisão do Tribunal.
Resistência popular
Apesar dos desafios, o documento também ressalta que comunidades e movimentos populares em todo o estado seguiram em luta, com mais de 1.500 famílias, entre indígenas e sem terra, realizando ocupações e retomadas de território no estado. Dourado, no entanto, alerta para o crescimento da extrema direita nas ruas e nas redes sociais, o que demanda novas estratégias de resistência das comunidades.
“A mobilização de rua precisa também ser repensada, os movimentos precisam entender também outras estratégias, porque a extrema direita compreendeu esse espaço que a internet cumpre e faz a leitura das mobilizações diferente do que a gente tradicionalmente fazia ao longo dos anos”, aponta o agente da CPT.
Para Moisés Borges, o relatório é um importante instrumento para que os movimentos populares construam a luta em defesa do país e do povo brasileiro.
“A gente vê que o agronegócio, além de ter uma força muito grande em termos econômicos, também tem radicalizado suas ações com extrema violência contra todos nós. Então o Caderno de Conflitos é uma ferramenta importante para que a gente possa apresentar esses dados, essas informações e, contribuir, inclusive, para o fortalecimento da democracia no Brasil e a defesa da nossa soberania nacional“.