O silêncio de parlamentares do centro e da direita em torno da decisão do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), que mandou a Polícia Federal (PF) investigar possíveis irregularidades de emendas parlamentares, difere da postura adotada por congressistas de esquerda, que celebraram a medida. Os recursos somam R$ 694 milhões em repasses do orçamento da União.
“Acredito que o ministro Flávio Dino tem sido muito corajoso e tem cumprido um papel importante, porque o que ele reivindica nada mais é do que a transparência e a boa aplicação de recursos públicos”, comentou a deputada Sâmia Bomfim ao Brasil de Fato.
“São emendas parlamentares, porém elas precisam obedecer a critérios básicos de rastreabilidade, de transparência e já se tentou por diversas vezes estabelecer um processo de negociação com o Congresso, e o Congresso votou uma norma, se comprometeu em garantir esses aspectos de transparência e rastreabilidade, mas teima em seguir desrespeitando os critérios que o próprio Congresso aprovou”, acrescenta a deputada.
Os tradicionais vídeos de ataques ao STF, muitos relacionando o ministro Dino ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, deram lugar a uma articulação de bastidores pela aprovação da chamada “PEC das Prerrogativas”, uma iniciativa que busca alterar o texto constitucional para exigir autorização do próprio Congresso para que se investigue e processe parlamentares em ações criminais. Uma forma de blindagem de deputados e senadores. O que para o advogado, cientista político e presidente da Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Jorge Folena, é uma chantagem explícita de um poder contra o outro.
“Nós estamos diante de um parlamento chantagista. Isso é chantagem inconstitucional, inadmissível. O Poder Legislativo está chantageando o governo e chantageando o Poder Judiciário com ameaças permanentes”, destaca o especialista.
Nesta segunda-feira (25), Flávio Dino determinou que a PF investigue o repasse de R$ 694 milhões do orçamento da União envolvendo 964 emendas individuais de transferência especial, as chamadas “emendas Pix”, que que não tiveram plano de trabalho cadastrado no sistema oficial do governo.
Dino deu dez dias úteis para que o Tribunal de Contas da União (TCU) envie às superintendências da PF em cada estado a lista de emendas sem plano de trabalho que vão ser alvo de inquérito policial.
Na mesma decisão, Dino determinou ainda que o Ministério da Saúde seja alertado a não executar emendas de relator, identificadas pela sigla RP9, que não atendam a critérios objetivos, como a correção de erros ou omissões.
Semipresidencialismo informal
O ministro Flávio Dino tomou as decisões no âmbito de três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), das quais é relator, que questionam a ausência de critérios de transparência e rastreabilidade no manejo dos recursos públicos, além de levantarem a tese de inconstitucionalidade da própria impositividade das emendas, aponta Folena.
“Não é papel do parlamento brasileiro executar orçamento. Papel do parlamento brasileiro é fazer leis, fiscalizar e até contribuir na elaboração orçamentária, mas não ser ele o responsável pela execução do orçamento. Isso causou um desequilíbrio entre os poderes do Brasil”, argumenta o cientista político.
Folena lembra que a execução obrigatória das emendas parlamentares só passou a existir no Brasil a partir de uma articulação do então presidente da Câmara, o ex-deputado Eduardo Cunha, já no contexto de fragilidade do governo da ex-presidenta Dilma Rousseff. O que criou, na sua avaliação, uma espécie de “semipresidencialismo informal”, em que o Legislativo passa a ter poderes excessivos.
“A classe dominante brasileira não tem tido capacidade de vencer eleições para o governo federal no Brasil desde 2002. Então essa fragilidade da classe dominante brasileira de não ganhar as eleições no Brasil fez com que, a partir de 2015, quando o governo da presidente Dilma estava muito fragilizado, o parlamento conseguisse atribuir a si o que era, originariamente, uma atribuição do Executivo, segundo a Constituição de 1988”, explica Folena. Ele acrescenta que a alteração feita em 2015 fere uma cláusula pétrea da Carta Magna brasileira, no que se refere à separação de poderes.
“Isso tem gerado uma crise política muito grande e, além da quebra do princípio da separação de poderes, a malversação do orçamento público praticada pelos parlamentares”, avalia o cientista político. Para o especialista, portanto, não basta apenas exigir que se atendam os princípios da moralidade, transparência e ética, é necessário garantir a independência dos poderes, o que implica recuperar as atribuições do Executivo.
“É preciso que o Supremo Tribunal Federal declare inconstitucional todas as emendas constitucionais que mantêm o orçamento impositivo da forma que existe no Brasil, porque ele esvazia o poder da Presidência da República”, afirma Folena.
Tema em debate
No fim do mês de junho, o ministro Flávio Dino realizou uma audiência pública para discutir o impacto das emendas parlamentares no equilíbrio fiscal do Brasil, na sustentabilidade da dívida pública, na separação de poderes e na eficiência da gestão dos recursos públicos.
Na ocasião, Dino mencionou a arquitetura de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer como metáfora para tratar do assunto. “A Praça dos Três Poderes tem, evidentemente, os três edifícios sedes, respectivamente, do Judiciário, no caso do Supremo, Legislativo, Câmara e Senado, e Poder Executivo, o Palácio do Planalto. Porém, ninguém pode esquecer que no centro dessa arquitetura está exatamente a praça, ou seja, os donos do dinheiro público, os protetores da soberania popular, que são, portanto, aqueles que sobre os quais nós devemos parametrizar toda a ação dos três poderes”, disse o ministro.
“Se eventualmente nós não tivermos emendas parlamentares ajustadas a sua finalidade, novamente a conta é repassada para a praça”, completou o ministro, enviando em seguida um recado a setores do parlamento que o acusam de invadir as competências do Legislativo.
“Se o Congresso Nacional quiser tirar o presidencialismo da Constituição, pode tirar, assim como também pode desconstitucionalizar o devido processo legal orçamentário, mas enquanto estiver na Constituição, não se cuida, portanto, de uma invasão do Supremo, e sim de um dever. Se nós temos normas constitucionais que estão aparentemente em dissonância, a harmonização de tais normas é uma atividade tipicamente jurisdicional em todos os países do mundo, enquanto o Brasil for um regime democrático. Portanto, não há nenhum intuito de usurpação de atribuições de outros poderes.”