Nesta quinta-feira (11) completam-se 53 anos desde que o Decreto nº 70.040, de 11 de setembro de 1972, criou o Programa de Proteção do Cerrado, assinado pelo presidente Emílio Garrastazu Médici, durante o regime militar. A data deu origem ao Dia Nacional do Cerrado. Desde então, porém, existiram poucos avanços em termos de políticas públicas voltadas à conservação do bioma.
O Cerrado já perdeu mais de 50% de sua vegetação nativa e de suas nascentes e, de acordo com a pesquisadora Rosane Collevatti, há uma desvalorização por parte das políticas públicas, que não levam em conta o robusto conhecimento científico sobre o bioma – segundo bioma mais importante do país e berço das principais bacias hidrográficas – enquanto a expansão do agronegócio, a mineração e grandes obras de infraestrutura atuam pela devastação.
Para discutir esse cenário crítico, o Brasil de Fato DF conversou com Collevatti, que é geneticista evolutiva, graduada em Engenharia Florestal pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e doutora em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB). Sua pesquisa se concentra em ecologia e genética de paisagens agrícolas no bioma e investiga como espécies de plantas e animais respondem à agricultura intensiva e às mudanças climáticas.

Pode nos contar um pouco dos resultados gerados pelos projetos que desenvolve no Cerrado?
Estamos desenvolvendo um estudo com dados recentes do Inventário Florestal Nacional, uma iniciativa do governo brasileiro que visa catalogar toda a flora do país em todos os biomas. Os resultados mostram um quadro alarmante: em várias regiões do Cerrado, a riqueza de espécies já é determinada principalmente pelo clima atual e pelas alterações da paisagem, como a redução da vegetação nativa e a expansão agrícola.
Isso indica que o impacto ambiental tem ocorrido de forma rápida e intensa, mesmo em áreas onde a expansão agrícola é recente, há apenas duas décadas, como o Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).
Pesquisas de longa duração também confirmam que regiões com mais agricultura e menos florestas e savanas apresentam menor diversidade de plantas e animais, incluindo aves, mamíferos, abelhas, lagartos e anfíbios. Diversos estudos já mostram que o Cerrado está se tornando mais seco e mais quente, e a disponibilidade hídrica vem diminuindo. Essa realidade se soma a um cenário global, em que vários países já enfrentam crises hídricas devido ao uso intensivo da água para irrigação.
Os resultados mostram um quadro alarmante: em várias regiões do Cerrado, a riqueza de espécies já é determinada principalmente pelo clima atual e pelas alterações da paisagem, como a redução da vegetação nativa e a expansão agrícola.

Qual o papel do Cerrado no enfrentamento das mudanças climáticas?
O Cerrado desempenha um papel fundamental no enfrentamento das mudanças climáticas, principalmente por ser o berço de várias bacias hidrográficas importantes no Brasil, como os rios que abastecem a Bacia Amazônica (Araguaia, Xingu) e a Bacia do São Francisco, além de contribuições para a Bacia do Paraná. É um bioma é essencial para a manutenção do regime hídrico no Brasil e na América do Sul.
Outra função crucial está na preservação dos lençóis freáticos e aquíferos, já que sua vegetação de savana possui raízes profundas capazes de acessar água subterrânea, garantindo a manutenção da vegetação mesmo em períodos secos. Essa adaptação é vital para a conservação da água.
O problema é que o uso excessivo da água para irrigação agrícola compromete esse equilíbrio. A retirada da vegetação e a perfuração de poços reduzem a infiltração da água no solo, prejudicando o reabastecimento dos aquíferos e levando à seca de áreas como veredas na Bahia e em outras regiões do Cerrado. Por isso, é fundamental que o zoneamento ecológico e o planejamento do uso da terra considerem áreas mais secas ou sensíveis, evitando o uso inadequado da irrigação e garantindo água tanto para a vegetação quanto para a população.

Considerando a rápida perda de áreas naturais no Cerrado, como as pesquisas têm contribuído para a elaboração de políticas públicas de proteção deste bioma? Quais são os principais desafios para desenvolver pesquisas científicas sobre o Cerrado no Brasil, em termos de financiamento, infraestrutura e políticas de incentivo à ciência?
Um dos grandes desafios da pesquisa no Brasil continua sendo a dificuldade de transformar conhecimento científico em políticas públicas. Diversos estudos já apontam que o Cerrado está ficando mais seco e mais quente, e que a disponibilidade hídrica vem diminuindo.
O uso intensivo da água, associado às mudanças climáticas e à agricultura que remove as florestas, justamente as áreas que garantem a conservação hídrica, compromete esse serviço ecossistêmico e resulta em uma crise hídrica. Trata-se da crônica de uma morte anunciada. Infelizmente, não apenas eu, mas muitos outros pesquisadores têm demonstrado, com dados robustos, os impactos do avanço da agricultura e das mudanças climáticas sobre o Cerrado e outros biomas.
Um dos grandes desafios da pesquisa no Brasil continua sendo a dificuldade de transformar conhecimento científico em políticas públicas
Pelo contrário: aprovam-se leis absurdas, como a alteração do Código Florestal, que reduziu a largura das Áreas de Preservação Permanente. Isso só reforça a crônica da morte anunciada, em que inevitavelmente enfrentaremos a redução dos recursos hídricos.
Qual a importância dos saberes de comunidades tradicionais sobre Cerrado? Há uma integração desses conhecimentos com a produção científica sobre o assunto?
Os saberes das comunidades tradicionais são extremamente importantes para a conservação do Cerrado. Quando mapeamos a vegetação remanescente no Brasil, percebemos que as maiores áreas preservadas não estão apenas nos parques nacionais ou estaduais, mas também em territórios indígenas e de povos tradicionais. Isso ocorre porque esses povos não utilizam agricultura intensiva; eles praticam uma agricultura familiar que se integra à vegetação nativa, gerando heterogeneidade ambiental benéfica para diversas espécies.
Estudos mostram que, em áreas de agricultura familiar, a riqueza de polinizadores, como abelhas, se mantém alta, ao contrário do que ocorre em regiões de agricultura intensiva, onde o uso de agrotóxicos e monoculturas leva ao desaparecimento dessas espécies. A agricultura praticada por comunidades tradicionais é, portanto, mais sustentável e respeita as características ecológicas e geográficas do Cerrado e de outros biomas.
Esses povos são detentores de biodiversidade, incluindo espécies selvagens e cultivares domesticadas. Entretanto, a expansão da agricultura intensiva está avançando rapidamente, ocupando áreas próximas a zonas de preservação e territórios tradicionais. Isso causa impactos diretos, como falta de água e migração de pragas para regiões de conservação, comprometendo a manutenção desses ecossistemas.
Se a expansão agrícola continuar nesse ritmo, corremos o risco de que apenas parques nacionais, reservas indígenas e pequenas áreas protegidas permaneçam intactos. Portanto, integrar os saberes tradicionais à ciência e reconhecer o papel dessas comunidades é fundamental para a conservação da biodiversidade e a sustentabilidade do Cerrado.”

O Cerrado é reconhecido internacionalmente como hotspot de biodiversidade, mas ainda pouco estudado em comparação com a Amazônia. Que estratégias poderiam colocar o bioma no mesmo patamar de relevância científica global?
O Cerrado sempre foi um bioma esquecido, tanto em termos de financiamento quanto de conservação. Sua área protegida é muito menor do que deveria ser, especialmente se comparada à Amazônia ou à Mata Atlântica. Esse descaso não é por acaso: historicamente, o Cerrado foi planejado como fronteira agrícola, com a expansão sem restrições, o que levou à propaganda de que o bioma seria pobre e de baixo valor, com poucas espécies. Essa visão persiste até hoje.
O Cerrado é a savana mais rica do planeta, com uma quantidade de espécies de plantas comparável à da Amazônia, sendo cerca de 5.000 espécies endêmicas encontradas apenas no bioma. Além disso, cerca de 20% das espécies animais são endêmicas. Portanto, o bioma é extremamente valioso em termos de biodiversidade.
No entanto, essa riqueza nunca se refletiu em incentivos à pesquisa. Programas governamentais, como o PPBio do MCTI/CNPq, chegaram ao Cerrado apenas depois de contemplarem Amazônia, Mata Atlântica e Caatinga, e atualmente estamos apenas na segunda chamada para o bioma, um cenário insuficiente para a sua importância científica.
É necessário mudar a percepção pública e governamental sobre o valor do bioma, reconhecendo sua riqueza e endemismo, e integrá-lo efetivamente às políticas de conservação e desenvolvimento sustentável.
Em termos de conservação, pesquisa e políticas públicas, como a senhora visualiza o Cerrado nos próximos 10 a 20 anos? Que medidas concretas são imprescindíveis para que o bioma e suas comunidades sobrevivam e prosperem?
Atualmente, estima-se que cerca de 50% da vegetação nativa do Cerrado já foi perdida, e aproximadamente 30 milhões de hectares de pastagem estão degradados, áreas que poderiam ser recuperadas e restauradas tanto para uso agrícola sustentável quanto para restaurar os ecossistemas originais, como savanas e florestas. Considerando a taxa de perda, o Cerrado perde cerca de 1% da sua área por ano, o que torna a situação extremamente urgente.
É necessário investir, ter financiamento para pesquisa e conservação. Com recursos tão limitados, ainda conseguimos gerar resultados importantes, mas precisamos agir rapidamente para conhecer a biodiversidade das áreas sob maior pressão da agricultura intensiva antes que seja perdida. Nós precisamos de financiamento e uma urgência e medidas de conservação de áreas. A proteção dessas áreas deve ser imediata, principalmente daquelas ainda pouco estudadas, para que possamos identificar e preservar as espécies que ali estão.
Além disso, a visibilidade do Cerrado é muito menor do que a de outros biomas, como a Amazônia. Por isso, a mídia tem um papel fundamental em divulgar a importância do Cerrado e os resultados da pesquisa científica, tanto nacional quanto internacionalmente.
Outras ações são essenciais como o cessar o desmatamento atual e validar corretamente o CAR (Cadastro Ambiental Rural); Recuperar áreas de pastagem degradadas e restaurar áreas estratégicas de vegetação nativa; Revisar leis que prejudicam a conservação, como alterações no Código Florestal e possíveis perdões de desmatamento antes de 2008; e Garantir a continuidade da reserva legal na própria propriedade, evitando que áreas fragmentadas comprometam a conectividade da paisagem, essencial para a dispersão de plantas e animais e para a conservação da água.