O julgamento de Jair Bolsonaro (PL), de generais de alta patente e de outros réus apontados como o núcleo crucial da tentativa de golpe contra a democracia brasileira não é apenas mais um capítulo jurídico, é um encontro do Brasil com o seu passado, o seu presente e o seu futuro, como destacou a ministra Carmen Lúcia em seu voto.
O passado recente nos lembra que a democracia brasileira sempre esteve sob ameaça de forças autoritárias que buscam restringir vozes, silenciar a crítica e desmontar conquistas sociais. A tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito, sob coordenação de Jair Bolsonaro, não foi apenas uma ação isolada, mas um ataque organizado e violento que, se tivesse prosperado, impediria a atuação do Judiciário, das organizações sociais e de defensoras e defensores de direitos humanos em todo o país.
Os ataques antidemocráticos que culminaram no 8 de janeiro de 2023 confirmam os alertas feitos há anos por organizações sociais e movimentos de direitos humanos, desde os primeiros discursos de Bolsonaro contra o sistema eleitoral. Esses avisos não foram exageros, mas diagnósticos precisos de que a erosão democrática estava em curso. Hoje, a violência política segue ativa, mais articulada e profissionalizada, valendo-se de táticas de guerra híbrida, da instrumentalização institucional e de campanhas de desinformação que corroem a confiança pública e ameaçam a estabilidade democrática.
A tentativa de golpe de 2023 é também reflexo da impunidade aos crimes da ditadura civil-militar. Durante a ditadura, civis foram perseguidos, torturados e assassinados, enquanto os comandantes de rupturas institucionais jamais enfrentaram sanções. Todas as vezes em que militares intervieram na política brasileira, prevaleceu o silêncio institucional e a ausência de responsabilização. O julgamento encerrado nesta quinta-feira (11) é, portanto, sem precedentes: pela primeira vez, autoridades, especialmente as militares, que atentaram contra a ordem democrática foram chamadas a responder perante a Justiça — com direito de defesa assegurado, o mesmo que foi negado a milhares de brasileiras e brasileiros sob a ditadura.
Mas para que a democracia se fortaleça, não basta o julgamento. É urgente avançar em medidas de reconstrução institucional e de fortalecimento do controle civil sobre as Forças Armadas, com a responsabilização dos agentes envolvidos e a desmobilização das estruturas golpistas ainda em operação. Do mesmo modo, é urgente também revisar a competência da Justiça Militar em julgar crimes cometidos por militares contra civis — uma distorção que perpetua privilégios corporativos e nega às vítimas o acesso pleno à justiça. A revisão também é determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos na condenação do Estado brasileiro pela não responsabilização pelo assassinato do trabalhador rural Antonio Tavares e mais de 200 feridos no massacre em maio de 2002.
A democracia brasileira, mesmo com adversidades, é a condição mínima para a existência e a proteção dos direitos humanos. Sem ela, não há espaço para contestação, para mobilização social ou para a luta coletiva em defesa de territórios, da vida e da dignidade humana. No entanto, não podemos alimentar a ilusão de que a democracia formal basta. Ela precisa ser aprofundada e fortalecida, incorporando as vozes historicamente silenciadas: povos indígenas, quilombolas, populações negras, trabalhadoras e trabalhadores do campo e da cidade, movimentos populares.
É importante destacar que o ex-presidente não foi julgado pelos crimes cometidos na gestão da pandemia da covid-19, uma condução criminosa que ceifou a vida de mais de 700 mil pessoas e intensificaram as violações de direitos, especialmente de povos indígenas, quilombolas, trabalhadores do campo, mulheres e a população negra. Ainda que este julgamento não trate destes crimes, a justiça que se busca é por estas pessoas também.
O Brasil tem um longo caminho a percorrer. O julgamento deve ser mais do que um rito jurídico: precisa ser uma afirmação coletiva de que não aceitaremos retrocessos e de que a democracia não é concessão, mas uma conquista em permanente disputa. É também fundamental seguir na defesa da independência judicial e da soberania nacional, especialmente em contexto de ameaças externas dos Estados Unidos.
E, com a proximidade do Dia Internacional dos Direitos Humanos, celebrado em 15 de setembro, é fundamental refirmarmos que a democracia é essencial para a garantia de direitos humanos.