Entre memórias ainda vivas das cheias históricas e a ameaça constante das secas que definem o Pampa, um encontro reuniu as vozes da resistência. Lideranças indígenas, negras, rurais, movimentos sociais e feministas ocuparam a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, na última sexta-feira (12) para a oficina “Vozes do Pampa”.
Este é o terceiro encontro do projeto Vozes dos Biomas. O primeiro aconteceu no bioma amazônico, em Manaus (AM), o segundo foi realizado no bioma da Mata Atlântica, no Rio de Janeiro. As oficinas dos biomas da Caatinga, Cerrado e Pantanal serão no mês de outubro.
Vozes dos Biomas é um projeto conjunto das enviadas especiais da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP30) para Mulheres, Igualdade Racial e Periferias, Direitos Humanos e Transição Justa, Rosângela Lula da Silva, a Janja, Jurema Werneck e Denise Dora. O objetivo é construir coletivamente um diagnóstico e propostas para enfrentar a crise climática, garantindo que a transição justa tenha como pilar central os direitos humanos.
Pela manhã as enviadas visitaram o assentamento Integração Gaúcha, em Eldorado do Sul (RS). Durante a passagem, conheceram as hortas agroecológicas do assentamento e dialogaram sobre o bioma Pampa, a recuperação após as enchentes e a luta das famílias assentadas. Também participaram da comitiva a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, e a secretária executiva do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), Fernanda Machiaveli.

A coordenadora do Setor de Produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Roberta Coimbra, destacou o potencial produtivo do território e os desafios enfrentados pelas comunidades. “A gente tem um potencial muito grande de fruticultura, de leite, do arroz, das hortas, enfim, muitas cadeias produtivas que poderíamos desenvolver. Mas, por conta do esquecimento e da exclusão do acesso à terra, o Pampa concentra municípios com índices de desenvolvimento entre os mais baixos do Brasil, inclusive em comparação com regiões da Caatinga e do Nordeste”, afirmou.
Segundo Coimbra, essa realidade ainda é pouco conhecida fora do estado. “Muitas vezes, se imagina que o Rio Grande do Sul é superdesenvolvido, que não existe pobreza aqui, que a agricultura vai bem. Só se enxerga as grandes cooperativas, o que esconde a realidade social, ainda mais agravada pelas crises climáticas.”

A dirigente também chamou atenção para o modelo de financiamento agrícola que privilegia monocultivos. “No nosso estado, pelo menos nos últimos dez anos, 98% do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e do Mais Alimento só financiaram a soja transgênica. E boa parte da perda dos territórios naturais do bioma também veio pela expansão do eucalipto.”
Ela lembrou as mobilizações do MST contra a chamada “milícia agrária”, denunciando o avanço das empresas do setor. “Realizamos lutas fortes, com risco, enfrentando ameaças de grupos que grilam áreas e tomam conta do nosso bioma através de grandes empresas. Agora, com a reforma do eucalipto, isso tende a se agravar, porque uma grande empresa pretende plantar, só nos próximos três anos, mais de 4 milhões de hectares de eucalipto em nosso território.”

Coimbra ainda criticou a Lei nº 14.876, sancionada em 2024 pelo governo federal, que retirou a silvicultura da lista de atividades de risco ambiental. “Na prática, esses milhões de hectares não precisam passar por estudo de impacto ambiental nem por licenciamento. Isso coloca em risco todo o bioma Pampa e a vida das comunidades que dependem dele.”
Papel institucional
A defensora-pública geral em exercício, Sílvia Pinheiro de Brum, destacou o papel da instituição em assegurar direitos em meio a emergências climáticas, lembrando que a própria sede da Defensoria ficou submersa por dois metros de água em maio de 2024. “Todo o sistema de justiça parou. Foi um momento crítico”, disse.
Em 2024, a Defensoria realizou 2,09 milhões de atendimentos, sendo 249 mil relacionados diretamente à emergência climática. Silvia enfatizou que a instituição tem forte presença feminina: 58% das defensoras, 66% das servidoras públicas e 75% das estagiárias e residentes. Além disso, 51,15% do público atendido é formado por mulheres.
“Não é por acaso que esta é uma instituição preponderantemente feminina e feminista. Juntas somos uma potência. Estamos ao lado dos movimentos sociais na luta por um meio ambiente justo, com alimentos sem veneno, água limpa, floresta em pé, respeito às mulheres, povos originários, população negra, LGBTQIAPN+, pessoas com deficiência e toda a humanidade. Contem conosco”, concluiu.

Resgate do Pampa: “Nosso altar é a natureza”
O primeiro painel, intitulado “Do Pampa entre cheias e secas à COP 30”, abordou as realidades e desafios impostos pela crise climática. Representante do Movimento Negro Unificado Ìyá Sandrali Bueno, falou sobre a relação vital entre as comunidades de matriz africana e a natureza. Ela lembrou que o Rio Grande do Sul é o estado com mais autodeclarados de religiões afro-brasileiras, com mais de 65 mil terreiros. “Cada terreiro reconfigura a África em um novo território”, afirmou.
Para ela, a crise climática rompe um pacto sagrado. “O tempo é um orixá. Suas filhas, as estações, estão desorganizadas pela guerra que a humanidade trava contra a natureza.” A líder religiosa denunciou o impacto desproporcional das enchentes, que atingiram cerca de 750 terreiros, segundo dados do Conselho do Povo de Terreiro do estado. “São perdas materiais e espirituais que permanecem invisíveis às prioridades do poder público, porque a maioria desses espaços está localizada em áreas menos favorecidas das cidades”, pontuou.
Por fim repudiou as manifestações de intolerância que culparam as religiões pela tragédia. “Não existe castigo divino. O que existe são consequências da ausência de cuidados e de políticas públicas para enfrentar um desastre que vinha sendo anunciado há muito tempo. Se existe pecado, não somos nós os pecadores. Pecadores são aqueles para quem a ganância capitalista está acima da vida.”

Povos Indígenas: A solução para a crise climática
A indígena Kaingang Kuty Ribeiro, integrante da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), enfatizou que os povos originários não são apenas vítimas, mas parte essencial da solução. “Nós somos corpo-território. A terra é o nosso corpo, a água é o nosso sangue. Quando o território adoece, nós também adoecemos”, declarou.
Segundo Kuty, as comunidades indígenas no Rio Grande do Sul foram fortemente atingidas pelas tragédias recentes, tanto pelas enchentes de 2024, que destruíram casas, roçados e bens, quanto pelas secas prolongadas, que transformaram a terra em poeira e comprometeram a sobrevivência das famílias.
Ela denunciou que a resposta imediata não partiu do poder público, mas das próprias organizações indígenas, indigenistas, lideranças e movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “Ficamos invisíveis nas prioridades das autoridades. Isso é racismo ambiental”, afirmou.
Como proposta concreta, defendeu a demarcação de terras. “As terras indígenas são as áreas mais preservadas do Brasil. A demarcação não é apenas um direito constitucional, é também uma resposta climática de impacto imediato.”
Para Kudy, não há justiça climática possível sem os povos indígenas. “Queremos que a ação climática seja feita não apenas sobre nós, mas com a nossa participação, respeitando nossa autonomia e saberes. Não há futuro climático sem os povos indígenas. Não há transição justa sem cuidar do território no presente.”

Cuidado da terra
A dirigente nacional do MST no RS, Lara Rodrigues, reforçou que o enfrentamento da crise climática exige uma crítica direta ao capitalismo, sistema que, segundo ela, “viola corpos e territórios e nos desconectou da natureza”.
“Antes falávamos do degelo nos polos como algo distante. Hoje, sabemos o que é crise climática na pele, especialmente após a tragédia vivida no Rio Grande do Sul”, afirmou.
Para a dirigente, a solidariedade foi fundamental na resposta aos desastres, mas é preciso avançar em estratégias de transformação. “A defesa da alimentação saudável, das relações humanas e do combate à violência contra as mulheres passa também pelo entendimento de que só teremos avanços quando as lutas forem populares, quando o povo estiver à frente.”
Ela destacou ainda a importância de discutir a COP30 a partir da realidade concreta dos territórios. “Quem vive a terra sabe quais são os seus anseios. O futuro precisa passar pela soberania alimentar, por novas relações entre as pessoas e pelo rompimento desse sistema que gera desigualdades e destruição.”

Painel “COP 30: um mutirão feminino pela ação climática”
Enviada especial das mulheres para a COP 30, Janja Lula da Silva enfatizou a importância de ouvir as comunidades. Ela destacou que a iniciativa das escutas pelos biomas, já realizadas na Amazônia e na Mata Atlântica e agora no Pampa, tem como objetivo construir uma Carta dos Biomas a ser apresentada na abertura da COP30, em dezembro, em Belém (PA). “Mais do que falar, viemos aqui para ouvir vocês. Ao final dessa caminhada, temos o compromisso de entregar essa carta, com a voz de vocês, a cada líder presente na cúpula”, explicou.
A diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck, ressaltou a importância da escuta e do reconhecimento dos saberes locais no enfrentamento à crise climática. “Viemos aqui para ouvir. Não apenas sobre a consequência da crise climática, mas também sobre o que já foi feito, o que está sendo feito e o que vamos continuar a fazer para proteger o bioma Pampa”, afirmou. Para Werneck, a preservação do bioma, frequentemente visto como “pequeno, invisível e desprotegido”, é fundamental.
A dirigente também criticou a forma como os espaços de negociação internacional, como a COP, são conduzidos. “Os homens brancos de gravata falam em uma linguagem cifrada, negociando em nosso nome, propondo coisas que muitas vezes não respondem aos nossos anseios”, disse.
Por sua vez a advogada de direitos humanos, ativista feminista e conselheira diretora da Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, Denise Dora, filha da região da Pampa, lembrou que o debate climático global tem raízes no Brasil, desde a ECO 92, no Rio de Janeiro, quando foi organizada a tenda Planeta Fêmea, espaço de articulação da sociedade civil e do feminismo.

Ao se referir à tragédia climática que atingiu o Rio Grande do Sul em 2024, Dora destacou que a vivência da população gaúcha deve ser levada como aprendizado para o país e o mundo. “As pessoas perderam casas, móveis, fotografias, documentos, territórios de vida. Mas também houve uma enorme mobilização solidária, cozinhas comunitárias, abrigos, acolhimento de famílias. Essa experiência mostra que o cuidado humanitário é tão importante quanto os tratados internacionais”, afirmou.
Após as palestras, foram realizadas rodadas de escuta, permitindo ao público expor suas demandas e percepções às enviadas especiais.
Chamado à ação: “O futuro é feminino”
A ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, sintetizou a importância do diálogo. “Ouvimos muitas lideranças que desenvolvem tecnologias sociais muito importantes. Conhecer mais o Pampa, respeitar povos e comunidades tradicionais e regularizar a situação da terra dessas comunidades é fundamental para estabelecermos uma relação de mais justiça climática.”
“Aprendemos muito sobre o bioma Pampa, sobre a realidade da região e sobre as experiências locais. Mas também ouvimos como as organizações e as pessoas ainda estão profundamente marcadas pelas grandes inundações do último ano e do ano anterior, pelas perdas que sofreram e pelo processo de reconstrução que estão enfrentando”, afirmou Dora.
Segundo a advogada, o encontro trouxe propostas concretas que serão sistematizadas e levadas para o espaço de negociação da COP 30. “Existem muitas ações que podemos fazer para evitar que o planeta aqueça indefinidamente, mas isso passa necessariamente por uma solução global. Por isso, é fundamental ter as Nações Unidas reunindo os Estados-membros em uma conferência. E o fato de ela acontecer no Brasil, na Amazônia, é ainda mais simbólico, pois mostra como, na vida real, os povos do mundo estão construindo suas próprias propostas de solução.”

Já a médica e ativista Jurema Werneck enfatizou que são as mulheres das comunidades tradicionais que estão na linha de frente das respostas às tragédias climáticas no RS. “Como elas disseram aqui, as gurias: são mulheres quilombolas, indígenas, catadoras, ciganas, das vilas, que estão na linha de frente das soluções. Elas não têm o dever de fazer política pública, mas estão cobrando que a autoridade assuma seu papel. Negligência e racismo ambiental não são aceitáveis. Elas denunciam o conluio de algumas autoridades com os interesses privados.”
Por fim, Janja ressaltou o papel insubstituível das mulheres. “Justiça climática só vai acontecer com a participação das mulheres. A liderança das mulheres para a resiliência em relação às mudanças climáticas é o que torna possível alcançar a justiça climática. Sem elas, não vai acontecer. O futuro é feminino.”