Quando você pensa em vodu, qual a primeira imagem que vem à mente? Se imaginou bonecos cravados de alfinetes, zumbis controlados remotamente por feiticeiros ou alguma outra situação sombria, é sinal de que você é uma pessoa comum que consome a cultura produzida no Ocidente. Afinal, falando só de filmes de Hollywood, existem mais de 70 produções listadas no verbete Filmes Sobre Vodu e, quase todos, exploram estereótipos negativos.
E não são só filmes, mas músicas, desenhos animados, reportagens, artigos de opinião e piadas, aparentemente inocentes, mas que carregam e mantêm preconceitos que ajudam a reduzir a religião do Haiti a algo essencialmente ruim. E longe da verdade.
“As pessoas dizem que o vodu é o diabo, que o vodu carrega a morte, mas o vodu é a vida. Praticar vodu é proteger a vida, fazer com que ela continue andando no seu caminho. Sua prática é um momento de respeito ao meio ambiente, às árvores, é viver em harmonia com a natureza”, resume o sociólogo haitiano Moise Dayiti.
A reportagem do Brasil de Fato esteve no Haiti onde verificou que a prática de origem africana e trazida à América por escravizados, assim como o candomblé e a umbanda aqui e a santeria cubana, são práticas vibrantes, animistas, que pregam o respeito ao meio ambiente e a harmonia com a natureza.
E com muita música. Abaixo, um exemplo de como as cantadas nos cultos de vodu são semelhantes às da nossa umbanda e candomblé.
Assim como as religiões afro-brasileiras, o vodu é fruto da diáspora africana, uma forma como essas pessoas escravizadas lidaram com o novo espaço onde se encontravam, trazendo espíritos já cultuados em seus locais de origem. Não tem uma autoridade central como um papa, as rezas são geralmente coletivas, com muito tambor, música, dança e entidades que encorporam durante os rituais. E foi também combatida pelo cristianismo.
“Religiões nascidas no período colonial são lidas por esse poder, pelo branco europeu, como religiões desviantes, formas equivocadas de se relacionar com divindades. São lidas na chave do racismo antinegro”, diz o antropólogo e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Rodrigo Bulemah.
Sua colega do Núcleo de Estudos da Religião da Uerj, Joana Bahia, argumenta que “é difícil você ter, numa sociedade cristã, a aceitação de populações e pensamentos e religiões não cristãs”. Ela explica que no Brasil, as religiões afro encontraram formas de resistir a esse racismo, principalmente por meio da arte.
“A musicalidade brasileira que se inicia na Primeira República, na virada do século 19 para o século 20, é toda baseada, 90%, em letras de feitiço”, exemplifica Bahia.
História
Se no Brasil os cultos de origem afro usaram arte para sobreviver, no Caribe, os haitianos usaram o vodu para alcançar a liberdade e se tornar o primeiro país americano a abolir, na marra, tanto a escravidão como o jugo colonizador francês, em 1804. E, até hoje, tanto por castigo como para impedir que se tornasse inspiração a outros oprimidos, o país paga um preço caríssimo por tanta ousadia.
Mas a inspiração e a força para a Revolução Haitiana foi o vodu. “No dia 14 de agosto de 1791, durante a cerimônia de Bwa Kayman foi feita a oração de Dutty Boukman na qual os participantes convidaram um conjunto de entidades vodu, pessoas, ancestrais, entidades chamadas loa [semelhantes aos orixás do candomblé] para que viessem participar da batalha pela independência”, explica o sociólogo haitiano Moise Dayiti ao Brasil de Fato.
Dayiti afirma que a relação entre a política e o vodu nunca diminuiu e segue como um dos pilares da identidade do país, mesmo sendo combatido e difamado desde a colonização até hoje. “Os franceses cortavam nossas árvores sagradas, diziam que era coisa do diabo. Hoje contam muitas mentiras, dizem que a violência é culpa do vodu. Mas ele sempre foi resistência cultural, política e econômica, está em todas as esferas da vida.”
“A religião vodu vai contra a lógica individualista que o ocidente e o cristianismo nos impõem. No vodu, a comunidade vem antes do indivíduo. Se hoje os haitianos resistem é por causa do vodu e do idioma crioulo”, resume.
O antropólogo Rodrigo Bulemah, também autor de Ruínas circulares: uma antropologia da história no norte do Haiti, descreve à reportagem o vodu como um sistema de conhecimento que considera espíritos e ancestrais, influenciando a vida diária, a política, a proteção e a cura. Enfatiza a produção comunitária e a solidariedade, com espíritos habitando a natureza e promove a proteção ambiental, contrastando com o individualismo ocidental. E convive bem com outras religiões.
“Nesse ponto, também se parece muito com o Brasil. As pessoas transitam entre diferentes religiões de maneira muito fácil, porque estão interagindo com diferentes forças, figuras de poder, como, por exemplo, os padres, os párocos, as bambôs, o pai de santo”, diz ele.
A quem interessa tanto preconceito?
Bulemah explica que a ocupação estadunidense (1915 -1934) tentou erradicar o vodu, “com os fuzileiros navais cortando árvores, que eram a moradia dos espíritos”, mas a iniciativa acabou por fortalecer ainda mais a crença.
“Quando você corta árvore, está atestando que o espírito mora lá. Quando condena um pai de santo, atesta que ele tem poder espiritual, não pode ser ignorado”, diz. Bulemah explica que durante os governos de Jean Bertrand Aristide (1991; 1994 a 1996 e 2001 a 2004) o vodu foi reabilitado.
“Pautado pela teologia da Libertação, Aristide reconheceu o vodu como religião popular a ser respeitada, incorporar a pluralidade religiosa.”
O antropólogo explica que “mais recentemente, quem começa a perseguir o vodu no Haiti, são as igrejas pentecostais”.
“Muitos missionários estrangeiros revivem o racismo antinegro construindo escolas, investindo em bairros populares e dizendo que o vodu é diabólico. Que o vodu até causou o grande terremoto de 2010 [que matou 300 mil haitianos].”
Sim, por mais absurdo que pareça, tamanha sandice foi ecoada até por um colunista do jornal estadunidense The New York Times. Naquele dolorido ano de 2010, David Brooks escreveu que o vodu contribuiria para o atraso haitiano por pregar que o destino é incerto e planejar é inútil. Portanto, na sua lógica, a culpa por tantas mortes foi do vodu que impediu os haitianos de se prepararem bem para o terremoto.
Bulemah rebate o argumento racista afirmando que “a relação com espíritos era atravessada por valores morais como solidariedade, proteção da natureza, honra aos ancestrais que lutaram contra a escravidão. O que implicava sempre num planejamento quanto ao que ia ser oferecido nas festas e também, eventualmente, como proteção pra quando alguém fosse migrar”.
Mesmo aqui no Brasil, parece existir licença para difamar a religião haitiana, até entre os progressistas. Em 2018, o colunista da Folha de São Paulo Clóvis Rossi (1943-2019) publicou artigo intitulado Corrupção é vodu que desgraça o Haiti?, no qual desfila clichês e preconceitos impunemente. Só faltou mencionar bonecos alfinetados e zumbis.
Aliás, sobre isso, Rodrigo Bulamah diz que não muito diferente do que se vê por aqui, por lá existe essa “coisa de pegar a foto da pessoa e colocar em algum lugar, pegar um pedaço de roupa”.
“É parte do universo da magia que a gente encontra em várias religiões, na verdade. A religião católica também tem muitos casos disso. A hóstia, como corpo de Jesus, um processo de metamorfose de Cristo naquele objeto”, conclui.
Mas, além do obscurantismo cristão, qual o motivo de tanta publicidade negativa, essa campanha para difamar a religião haitiana? O geógrafo Wisnel Joseph, apresentador do podcast O Haiti é também aqui, assim como inúmeros pensadores haitianos defendeu durante o BdF Entrevista que a imagem negativa é fruto de um projeto histórico para isolar e enfraquecer a primeira República negra do mundo. “O Haiti não é um país pobre, mas o Haiti é um país empobrecido”, sentenciou.