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Valerio Arcary é professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da Resistência/PSol, e autor de O Martelo da história, entre outros livros.

Assimetrias do lugar do Brasil no Brics

Uma nação é um povo que amadureceu o bastante para ter uma visão de si mesmo como uma comunidade com um destino compartilhado em um espaço definido.

A corda rompe sempre pelo lado mais fraco (Provérbio popular português)

Brasil e Índia são os dois países que sofrem com as sanções tarifárias mais elevadas decretadas pelo governo Trump. A presença do Brasil no Brics responde a necessidades defensivas imperativas frente às ameaças e pressões estadunidenses que podem até se agravar. O Brics cumpre um papel progressivo ao oferecerem um espaço alternativo diante da histórica dependência do Brasil diante dos EUA. Mas as assimetrias entre os países do Brics não são irrelevantes. Não é razoável desconsiderá-las, não só porque o Brasil é um elo econômico, incomparavelmente, mais fraco.

]O Brasil exporta, essencialmente, commodities, e importa produtos com muito maior valor agregado, uma dinâmica de relações de troca desiguais. Evidentemente, o Brics não é um acordo comercial entre iguais, em especial, com a China. Mas o Brasil é, também, politicamente, mais débil considerados os impasses da articulação latino-americana, e das ameaças da Argentina com o governo Milei hostilizando o Mercosul. A expansão do Brics, incluindo em 2025 a Indonésia, ainda que elevando o grau de heterogeneidade política interna, tem sido positiva.

O Brics tem agora com 11 membros plenos: Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Irã e Indonésia. A posição oficial do Brics é que são uma articulação de países que se uniram para intensificar as relações entre si, mas, também, para pressionar a reforma das organizações do sistema da Organização das Nações Unidas (ONU).

Segundo as palavras oficias: “O grupo busca melhorar a legitimidade, a equidade na participação e a eficiência das instituições globais, como a ONU, o FMI, o Banco Mundial e a OMC.” Este vocabulário diplomático diz, implicitamente, que as atuais posições de poder da tríade, em especial dos EUA, não devem permanecer intactas.

Nação, Estado e país são conceitos indivisíveis, mas não são sinônimos. Uma nação é um povo que amadureceu o bastante para ter uma visão de si mesmo como uma comunidade com um destino compartilhado em um espaço definido. China, Rússia, e Índia são sociedades com culturas milenares, mas Brasil e África do Sul são nações, historicamente, ainda em construção.

Um Estado, desconsiderando a variedade de regimes políticos, mais democráticos ou mais autoritários, é um aparelho político-militar que exerce o poder porque tem o monopólio do uso da força, e sua natureza é definida pelo grupo social que controla as instituições, em especial, o governo.

Um país resulta da síntese entre uma ou mais nações sob a autoridade de um Estado, portanto, uma sociedade que se explica pelas relações de classe que prevalecem, e pelo seu lugar no mundo.

O mundo é complicado: há nações sem Estado, como palestinos e curdos, e Estados sem nação, como o Mônaco, um híbrido de Las Vegas e paraíso fiscal, Andorra, uma zona franca nos Pirenéus ou o Vaticano, sede da Igreja Católica. Um país pode ser capitalista, mas, transitoriamente pelo menos, sem que o Estado seja burguês, como parece ser a excepcionalidade chinesa.

Rússia, Índia e China são países nos quais vivem diferentes nações, e são Estados independentes, já o Brasil não. O que se deve concluir destas premissas é que os interesses do Brasil são muito distintos dos principais Estados nos Brics. China, Rússia e Índia ocupam um lugar, qualitativamente, distinto e superior ao do Brasil.

Nenhum Estado se emancipou da dependência econômica, e conquistou independência política, nos últimos 150 anos, sem guerra ou revolução. Não obstante, a independência política no sistema internacional, por si só, não emancipa um Estado da condição periférica no mercado mundial, como evidencia as situações de Cuba e Venezuela.

Os dois processos têm relativa autonomia.  O Brasil pode ser compreendido como uma semicolônia privilegiada e, ao mesmo tempo, como submetrópole. uma semicolônia, porque é um país ainda atrasado, econômica, social e culturalmente. Sempre dependeu da importação de capitais e tecnologia, e tem uma burguesia resignada a um papel subordinado a Washington no sistema de Estados, entre outros muitos fatores.

Não obstante é uma semicolônia muito especial, ou privilegiada, o que se expressou ao longo de décadas de distintas formas, mas sobretudo, porque foi o primeiro destino dos investimentos dos EUA, Europa e Japão no pós-guerra até à década dos anos noventa. Quando da crise da superinflação provocada pela inadimplência da dívida externa, por exemplo, ao contrário de muitos vizinhos, sua economia nunca foi, plenamente, dolarizada. É uma submetrópole, porque o gigantismo da economia brasileira ofereceu escala e projetou presença de algumas grandes empresas nos mercados de países vizinhos da América do Sul transformando-se, também, em plataforma de exportação de capitais e serviços. Mas não é um país subimperialista, porque sua pujança econômica não se traduziu em domínio político: o projeto do Mercosul garantiu superávits comerciais, porém permaneceu, politicamente, estéril e acéfalo.

Quais são os critérios para entender o lugar de cada Estado no sistema internacional? As quatro variáveis chaves são a história, a economia, a política e as relações internacionais:

  1. A inserção histórica na etapa anterior, ou seja, a posição de cada Estado em um sistema extremamente hierarquizado e rígido é vital, e o Brasil, embora tenha conquistado uma independência formal há mais de 200 anos, permaneceu semicolônia inglesa até os anos trinta do século 20, depois foi uma semicolônia privilegiada dos EUA, e, se hoje está em uma localização semiperiférica, ainda é um país dependente. Enquanto a China protagonizou uma da maiores revoluções sociais da história, a  Rússia é uma das  duas maiores potências militares do planeta, e a Índia, ainda um país em que a maioria da população é pobre, tem um grau de independência pelo arsenal nuclear;
  2. A dimensão de sua economia, ou seja, os estoques de capital acumulado, a capacidade de manter soberania monetária, os recursos naturais – como o território, as reservas de terras, os recursos minerais, a autossuficiência energética, alimentar, etc. – e humanos – entre estes, sua força demográfica e o estágio cultural da nação – assim como a dinâmica de desenvolvimento da indústria, ou seja, sua posição na divisão internacional do trabalho e no mercado mundial o que explicita a inferioridade do Brasil;
  3. A capacidade de cada Estado em manter a sua independência e o controle de suas áreas de influência, ou seja, sua força militar de dissuasão, que depende não só do domínio da técnica militar ou da qualidade das suas Forças Armadas, mas do maior ou menor grau de coesão social da sociedade, portanto, da capacidade política do Estado de convencer a maioria do povo, se for incontornável, da necessidade da guerra, outros fatores que confirmam a debilidade qualitativa do Brasil;
  4. As alianças de longa duração dos Estados uns com os outros, que se concretizam em tratados e acordos de colaboração, e a relação de forças que resultam dos blocos formais e informais de que fazem parte, ou seja, sua rede de coalizão.

A avaliação da relação de forças entre Estados é só uma variável para entender o mundo. Marxistas consideram, também e principalmente, a luta de classes. A relação social de forças entre capital e trabalho, as duas forças sociais mais poderosas no mundo contemporâneo, permanece desfavorável para os trabalhadores e as massas populares.

Estamos em uma etapa histórica ainda condicionada pelas derrotas da restauração capitalista e do fim da URSS. No último meio século não triunfou nenhuma revolução socialista. Revoluções políticas democráticas aconteceram, derrubando regimes pela mobilização popular. Explosões de fúria popular incontível com greves gerais, ocupação de prédios públicos, libertação de presos políticos, manifestações de milhões nas ruas produziram cisões nos aparelhos repressivos, dividiram algumas vezes até as Forças Armadas e derrubaram governos odiosos na América Latina, na África e na Ásia. Mas não ameaçaram a ordem capitalista.

Foi assim no Sahel, no Sri Lanka, em Bangladesh e, recentemente, no Nepal. Mas não ameaçaram a ordem capitalista. Ao contrário, não são as ideias anticapitalistas que aumentaram influência, mas um programa desesperado de extrema direita ultracapitalista. A esquerda, em suas diferentes tradições, resiste em condições muito difíceis nesse contexto. O neofascismo chegou ao poder nos EUA e aumentou em muito sua força na Europa.

Vivemos um contexto de redução de direitos, não de expansão de conquistas. Ainda que os níveis de miséria tenham sido reduzidos, a desigualdade social permanece intacta na maioria dos países. Não fosse o bastante, a ameaça colocada pelo aquecimento global coloca o desafio de uma transição energética em crise porque o Tratado de Paris caducou. Esse quadro explica por que a presença do Brasil no Brics obedece a um cálculo defensivo irredutível.

*Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo).

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.