Ouça a Rádio BdF
A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é um espaço de diálogo e convergência entre movimentos, redes e organizações da sociedade civil brasileira engajadas em iniciativas de promoção da agroe...ver mais

Sob presidência do Brasil, transformação dos sistemas alimentares entra na Agenda de Ação da COP30 

ONU dá mais sinais de que a agricultura familiar e a agroecologia estão se afirmando como caminhos concretos frente à crise climática e alimentar?

Transformar a agricultura e os sistemas alimentares é um dos seis eixos da Agenda de Ação Climática Global da COP30. No relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), publicado nesta semana, que aponta a saída do Brasil do Mapa da Fome, uma das recomendações para evitar a escalada inflacionária dos alimentos é investir em sistemas agroalimentares resilientes, ou seja, aqueles com maior capacidade de se recuperar diante de desastres naturais, mudanças climáticas e crises econômicas. Podemos concluir que a Organização das Nações Unidas (ONU) a cada dia dá mais sinais de que a agricultura familiar e a agroecologia estão se afirmando como caminhos concretos frente à crise climática e alimentar?

Para entender os desafios e oportunidades para a agricultura familiar e a agroecologia na COP30, conversamos com Bruno Prado, doutorando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), coordenador de projetos na AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia e integrante do Grupo de Trabalho (GT) Justiça Climática da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

Prado participou da reunião preparatória para a COP30, que ocorreu em Bonn (Alemanha), no fim de junho. Ele conta que, pela primeira, vez a proposta de transformação dos sistemas alimentares é um eixo da Agenda de Ação da COP, que se trata de uma série de iniciativas propostas pela presidência de cada COP para impulsionar decisões e apoiar as negociações formais entre os países que participam da Conferência entre as Partes. 

“A Agenda de Ação é adotada voluntariamente por diferentes atores na COP e serve para impulsionar decisões ambiciosas e fortalecer sua execução, mas, diferentemente do processo formal, cujos temas são decididos multilateralmente, é a Presidência de cada Conferência das Partes que define sua Agenda de Ação”, explica.

“Ainda não se fala explicitamente em agroecologia, por exemplo, mas é crescente o papel da agricultura familiar na agenda climática, e a entrada neste tema é por meio do debate dos sistemas alimentares”, explica Prado. “A Agenda de Ação ajuda a apoiar direcionamentos da negociação formal. Os negociadores dos países estão discutindo financiamento climático e outros grandes temas, mas como é um tema proposto pela presidência da COP, no caso brasileira, abre oportunidades para influenciarmos os resultados da COP”, ele afirma.

Na entrevista, Bruno Prado explica essas e outras questões, como o papel crucial da agricultura familiar nas negociações climáticas, o tratamento da ONU para a agricultura familiar e seus principais desafios nesta COP.

Agroecologia e Democracia: Qual papel a agricultura familiar vem ocupando nos debates da COP?

Bruno Prado: O papel da agricultura familiar (AF) vinha sendo periférico no debate climático, mas há diversas demandas de organizações da sociedade civil e de movimentos sociais para reverter esse posicionamento, garantindo um papel mais estratégico nos debates da COP. Alguns espaços construídos pela sociedade civil podem ser destacados nesse esforço: no início de junho, por exemplo, a ANA [Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico] esteve presente na pré-COP da Agricultura Familiar, em Brasília, convocada pelo Fórum Rural Mundial. Na Cúpula dos Povos, espaço construído pelos movimentos sociais e sociedade civil que ocorrerá paralelamente à COP30, a agroecologia e soberania alimentar são temas centrais. Isso tudo tem levado a um reconhecimento crescente, que busca superar esse papel marginal da AF nos espaços formais de governança climática. 

Como a ONU trata a agricultura familiar?

A ONU reconhece o papel essencial da agricultura familiar para a segurança alimentar, erradicação da fome, resiliência climática e sustentabilidade dos sistemas alimentares. A FAO propôs uma iniciativa importante: a Década das Nações Unidas para a Agricultura Familiar (2019-2028), lançando um plano de ação global que inclui o fomento a políticas públicas, equidade de gênero, acesso a financiamento e promoção de sistemas alimentares climáticos resilientes. Este plano também tem um papel importante de chamar atenção para as desigualdades que o campo da agricultura familiar atravessa: pouco financiamento na área climática, desigualdades de gênero entre outros. A agricultura familiar é responsável pela produção de mais de 80% dos alimentos no mundo, mas o financiamento climático ainda não dá a devida atenção ao setor. Segundo a FAO, as mulheres são detentoras de 15% das áreas de produção agrícola, mas são responsáveis por mais de 50% do trabalho na agricultura. Para nós, esses são dados significativos também porque demonstram que grupos mais vulneráveis são os primeiros afetados por desastres climáticos. Por outro lado, também há diversas pressões dos “impérios alimentares” em espaços da ONU, portanto não se pode falar de uma posição heterogênea sobre a agricultura familiar na ONU.

No documento preparatório para a COP30 que resultou da reunião Bonn e foi concretizado na Agenda de Ação, houve menções à agricultura familiar ou à agroecologia?

Bonn representou esse movimento que mencionei anteriormente, podemos dizer que o tema da agricultura familiar e da agroecologia vem aparecendo e buscando destaque. No tema da adaptação, por exemplo, a agricultura familiar aparece buscando valorizar sistemas alimentares sustentáveis baseados em modelos agroecológicos e como estratégia de acesso a alimentos saudáveis. No tema da mitigação, a posição da agroecologia é mais marginal, mas tem um papel importante nas críticas à substituição da carne por proteínas alternativas e alimentos ultraprocessados.

Ainda assim,  a Agenda de Ação da COP30, que foi apresentada pela presidência brasileira, incluiu o tema da “transformação dos sistemas alimentares” como um de seus eixos. Os movimentos sociais e organizações da sociedade civil haviam reivindicado explicitamente a inclusão de agroecologia na Agenda de Ação da COP30, especialmente em debates com a Presidência da COP no evento em Bonn.  

Quais pontos referentes à agricultura familiar e ao agronegócio devem entrar em evidência nesta COP?

Em primeiro lugar, a inclusão da AF e da agroecologia nos Planos Nacionais de Clima, por meio da inclusão efetiva nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), que são os compromissos de cada Parte para manter a temperatura abaixo de 1.5°C, assim como nos planos de adaptação e mitigação climática. Esse ponto é muito importante nessa COP porque é a primeira vez que cada país deverá apresentar suas NDCs revisadas. Vale destacar também que o  Brasil colocará parte do seu Plano Clima em consulta pública agora, em agosto. Outro ponto é a criação de mecanismos de financiamento climático para a agricultura familiar. 

A agroecologia é prática estruturante para mitigação e adaptação climática, que valoriza o manejo sustentável dos bens comuns da natureza, a diversidade produtiva e a resiliência dos territórios. A justiça socioambiental também é uma pauta prioritária para nosso campo, especialmente no que se refere à participação ativa de comunidades locais, povos e comunidades tradicionais, juventude e mulheres rurais nos processos decisórios e de governança climática.

A agroecologia também tem um papel fundamental no enfrentamento ao modelo predatório do agronegócio, baseado na monocultura, na exportação em larga escala, na dependência de insumos químicos e na geração de gases de efeito estufa. Esses temas refletem a urgência de reestruturar os sistemas agroalimentares a partir de modelos agroecológicos, que são mais justos, sustentáveis e centrados nos sujeitos coletivos da agroecologia.

O que significaria posicionar a agricultura familiar na agenda internacional de clima?

Em primeiro lugar, garantir sua visibilidade política nas negociações multilaterais, reconhecendo o papel estratégico que ela apresenta frente à crise climática. Também implica a integração concreta da agricultura familiar nos instrumentos oficiais de política climática, como as NDCs e os planos de adaptação e mitigação. O central aqui é a democratização da governança dos sistemas agroalimentares, por meio da descentralização territorial e do fortalecimento do protagonismo dos sujeitos coletivos da agroecologia.

Qual a diferença entre agricultura familiar e agronegócio em termos de impacto climático?

A agricultura familiar tem foco na diversificação da produção, no uso de práticas agroecológicas e nos sistemas agroflorestais, com baixos volumes de insumos externos, com um manejo ético da terra. Ela é exemplar para maior resiliência às mudanças climáticas, por isso é fundamental tanto para a mitigação e adaptação climática, quanto para a soberania alimentar nos territórios.

O agronegócio baseia-se em um modelo marcado pela monocultura, alta dependência de fertilizantes e agrotóxicos, e pela expansão sobre áreas de floresta, por meio do desmatamento. É um modelo que gera emissões elevadas de gases de efeito estufa (GEE), aumenta as vulnerabilidades sociais nas regiões e está fortemente orientado à exportação de commodities agrícolas, sendo, por isso, altamente impactante para o agravamento da crise climática.

Como isso se percebe na prática?

Na prática, isso se revela no contraste entre os sistemas agroecológicos –  presentes em propriedades de agricultura familiar e áreas dos povos e comunidades tradicionais com práticas de conservação do solo – e o modelo do  agronegócio – baseado em monocultivos de soja, cana e pecuária intensiva, que seguem gerando desmatamento e altas emissões. 

Os coletivos da agroecologia, por sua vez, constroem circuitos curtos de abastecimento, com alimentos saudáveis a preços acessíveis, baseados na economia solidária e com práticas sustentáveis, reforçando a soberania alimentar e a democracia a partir dos territórios. 

Quais as perspectivas de que a COP30 reconheça a importância da agricultura familiar para a reestruturação dos sistemas alimentares? 

Em primeiro lugar, quero enfatizar o engajamento ativo da sociedade civil brasileira e internacional no processo preparatório da conferência com a agenda da agroecologia, com a formulação e entrega de propostas à Presidência da COP30. Isso reflete a capacidade de articulação, incidência e construção de agendas alternativas.

Nesse cenário, espaços da sociedade civil e movimentos sociais, como a Cúpula dos Povos, têm muita relevância porque reúne movimentos sociais, organizações populares, povos e comunidades tradicionais, promovendo o debate público, a articulação internacional e a denúncia das falsas soluções aliada ao anúncio das qualidades da agroecologia. A cúpula é uma oportunidade concreta de dar visibilidade às propostas da agroecologia e ampliar sua força política, reforçando a disputa de narrativas e influenciando os rumos da agenda climática global.

Nos espaços formais, a inclusão do eixo “Transformação da Agricultura e dos Sistemas Alimentares” na Agenda de Ação da COP30 é um sinal de uma abertura institucional para um debate em que a agricultura familiar e a agroecologia se afirmam como caminhos concretos frente à crise climática e alimentar.

Qual o maior desafio para a agricultura familiar nesta COP?

O principal desafio é traduzir as propostas da sociedade civil e movimentos agroecológicos em instrumentos concretos dentro dos textos oficiais da UNFCCC [Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima]. Ter a inclusão explícita de agroecologia, acessos a fundos climáticos adequados, financiamento direto aos agricultores familiares e povos e comunidades tradicionais, garantir a participação formal nos mecanismos decisórios. Também é necessário enfrentar a lógica dominante do agronegócio, que vem bloqueando as transformações. É preciso que a COP30 avance na justiça climática e nos sistemas agroalimentares resilientes.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Veja mais