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Jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração E...ver mais

A Era das Besteiras, parte II

Em Limeira (SP), a câmara de vereadores votou e impôs condição de persona non grata no município a Alexandre de Moraes, ministro do STF

Duas cidades, uma em São Paulo e outra no Rio Grande do Sul, pavimentaram nos últimos dias sua passarela para o Museu Nacional do Grotesco. Suas façanhas lá irão conviver com orações para pneus, contatos extraterrestres através de celulares nas cabeças, vacinas chinesas com chips que chupam cérebros, atlas da terra plana e infindáveis marchas soldado cabeça de papel com garbo e imponência.

Em Limeira (SP), a câmara de vereadores votou e impôs condição de persona non grata no município ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). O pai da criança é um bravo edil do PL que, embora brasileiro, seguiu a Lei Magnitsky por ele reputada como “uma das mais severas sanções previstas pelo ordenamento jurídico norte-americano”. Ou seja, Limeira doravante deve se chamar Lime Tree.

Como a gauchada não poderia permitir que São Paulo tomasse essa dianteira, Nova Prata (RS), na Serra do Nordeste, deu um passo além: votou e aprovou uma moção (“mossão”, segundo os vereadores) de apoio a Donald Trump.

Uma das parcas vantagens daquilo que os sádicos apelidaram “melhor idade” é perceber como as coisas se repetem, com outra roupagem mas com repertório similar. Em outros termos, o diabo não sabe por ser diabo mas por ser velho. Então, todo esse arroubo fóssil, a boçalidade ostentação, o regressismo arrogante, o culto ao ressentimento, a palhaçada involuntária já aconteceram. Bem antes do bolsonarismo deixar sequelas e sequelados, houve uma irrupção das catacumbas em 1964 com resultado análogo.

“No conjunto de seus efeitos secundários, o golpe apresentou-se como uma gigantesca volta do que a modernização havia relegado; a revanche da província, dos pequenos proprietários, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em lei etc”, descreve Roberto Schwartz em Cultura e Política 1964-1969 – Alguns Esquemas, ensaio de 2001.

A “revanche da província” parece perfeito nos dois casos acima. Estamos em falta de ratos de missa – a Igreja Católica tomou distância de 1964 – mas os picaretas da fé e vendedores de terrenos no céu estão mais ativos do que nunca. Não nos faltam proprietários alvoroçados, pudibundas (embora falsificadas quase sempre) e tampouco a futilidade dos bacharéis. Schwartz segue retratando o ambiente do Brasil pré e pós golpeado:

“Tesouros de bestice rural e urbana saíram à rua na forma das “Marchas da família, com Deus pela Liberdade”, movimentavam petições contra divórcio, reforma agrária e comunização do clero, ou ficavam em casa mesmo, rezando o “Terço em Família”, espécie de rosário bélico para encorajar os generais”. Ele continua:

“Agora, no rastro da repressão de 64, era outra camada geológica do país quem tinha a palavra. ‘Corações antigos, escaninhos da hinterlândia, quem vos conhece?’ Já no pré-golpe, mediante forte aplicação de capitais e ciência publicitária, a direita conseguira ativar politicamente os sentimentos arcaicos da pequena burguesia”.

Antes do Ato Institucional 5, o cronista Sérgio Porto, através de seu alter ego Stanislaw Ponte Preta, publicou três edições do Festival da Besteira que Assola o País, documento precioso sobre o atraso, a estupidez e a hipocrisia que vieram à tona impulsionadas pela nova ordem que surgia. Hoje, após o golpe contra Dilma Rousseff, o mandato do usurpador, a prisão de Lula, o trágico quatriênio do falso Messias e seus ecos que nos perseguem, a preservação da memória nacional cobra tarefa semelhante.

*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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