O Brasil está assistindo ao remake de Vale Tudo e é fascinante ver como os personagens foram atualizados para os nossos tempos. Curiosamente, os vilões nem parecem tão maus quanto no original – ou será que, comparados aos que vemos todos os dias na vida real, eles são até suaves?
A novela está batendo recordes de audiência, conquistando inclusive a geração millennial, que já havia abandonado a TV aberta. Quem não fica revoltado vendo Maria de Fátima enganando a própria mãe, uma mulher honesta e puritana, que parece viver num planeta onde ainda existe ética? E quem não dá uma risada nervosa quando Odete Roitman diz à irmã que está falida porque tem “apenas” 5 milhões — pobre Celina [contém ironia].
Mas a novela também traz atualizações interessantes, como quando Lucimar usa o aplicativo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro para cobrar na Justiça o pagamento da pensão alimentícia e o app registra mais de 270 mil acessos em 1 hora. A ficção dialoga com a realidade: mulheres exigindo seus direitos, enfrentando estruturas patriarcais que ainda resistem.
Agora, vindo para o vale tudo de Brasília, vemos que a arte imita a vida faz muito tempo. No Congresso Nacional, o que assistimos diariamente é literalmente um vale tudo. Um Congresso que, embora tenha a prerrogativa constitucional de representar o povo brasileiro, tem usado esse poder para representar, na prática, os interesses privados, sobretudo os dos setores mais ricos e conservadores da sociedade.
Se fôssemos listar aqui todas as votações em que o Congresso atuou contra o interesse da maioria do povo brasileiro, este artigo teria pelo menos 20 páginas. Mas vou citar algumas das piores. A famigerada PEC do Teto de Gastos, de 2016, congelou por 20 anos investimentos em saúde e educação, exatamente em um país cuja população continua crescendo e cujos serviços públicos já eram deficitários.
Mais recentemente tivemos a proposta do presidente da Câmara, o deputado Hugo Motta, da Paraíba, que defendeu a possibilidade de deputados acumularem salário e aposentadoria, o que é proibido desde 1997; e a aprovação da ampliação do número de cadeiras na Câmara, de 513 para 531 deputados, uma decisão contraditória para quem vive pedindo ao governo “enxugar a máquina pública”, enquanto eles “lavam a calçada de mangueira”.
Se fizermos um raio-x com dados recentes do IBGE, a contradição salta aos olhos: 55% da população brasileira são mulheres, mas só 17% do Congresso é feminino. Negros e pardos são 56% da população, mas representam apenas 24% da Câmara. E o mais gritante: enquanto a renda média mensal do brasileiro é de R$ 2.069, um deputado recebe R$ 46.366,19 por mês, sem contar a verba de gabinete de R$ 133 mil. E cada um ainda tem quase R$ 37 milhões em emendas parlamentares para destinar, todos os anos, para suas bases eleitorais. Agora me diz: você se sente mesmo representado?
Recentemente, o presidente da Câmara, deputado Hugo Motta, divulgou uma pesquisa da Quest que mostrou que 68% dos deputados eram favoráveis à derrubada do decreto do IOF, que taxava os mais ricos. Curioso é que, quando fui ler os comentários na internet (sim, eu leio comentários), muita gente dizia: “por que ele não pergunta ao povo?” — e olha, eu achei uma pergunta justa.
Hugo Motta nunca foi exatamente um entusiasta da democracia de alta intensidade. Ele votou pelo impeachment da presidenta Dilma, defendeu Eduardo Cunha com afinco e tem uma relação de longa data com Arthur Lira. Tem méritos? Sem dúvida, tem: sabe se movimentar dentro do Congresso, fez acordos e se articulou. Mas isso não pode ser desculpa para aprofundar ainda mais o abismo que separa o Congresso do povo brasileiro.
As autocracias e ditaduras caçam direitos civis. E ter um Congresso de deputados e deputadas é poder ter representantes. Mas quando estes não nos representam mais, é hora de trocá-los. O Congresso precisa ser a “casa do povo” e não dos inimigos do povo.
E fechando esse papo: vocês acham que o presidente da Câmara estaria mais para Odete Roitman, com seu desprezo elitista disfarçado de pragmatismo, ou está mais para Maria de Fátima, com sua ambição desmedida e seu oportunismo quase sem limites? Talvez ele seja uma mistura das duas: Odete na estratégia, Fátima no desejo de ascensão. Só sei que Raquel Accioli, a personagem ética e batalhadora que representa o povo brasileiro, anda bem em falta no Congresso Nacional.