Por Luciano Mendes
Quando criança, eu frequentava muito a casa onde meu avô e minha avó paternos moravam, lá em Pocrane, cidade de Minas Gerais, onde fomos morar depois que meu avô morreu.
Me chamavam a atenção o rádio, sempre sintonizado na Rádio Relógio, o fogão que funcionava com pó de serra, um grande quadro, na parede, que mostrava os dois caminhos possíveis para a humanidade – o caminho, difícil, da salvação e o caminho, fácil, da perdição – e, sobretudo, a instalação elétrica que percorria toda a residência.
Na verdade, o que chamava a atenção da criança que eu era, não era propriamente a instalação elétrica em si, mas o simples fato de, apesar dela, a casa não contar com eletricidade. Eu ficava intrigado, e me perguntando, como podia uma casa ter os fios, os bocais para as lâmpadas, os apagadores pregados nos portais e não ter eletricidade. Mas assim o era. Demorei um bom tempo para entender que a história não é progressista. Que falta faz uma leiturazinha de Walter Benjamin no ensino primário!
Confesso que adentrei a estas memórias, nos últimos dias, não por meio dos fios, mas dos trilhos. Explico. Estava eu lendo o romance Caligrafia dos sonhos, do escritor catalão Juan Marsé (Alfaguara,2014), em que uma das cenas iniciais e mais emblemáticas, se passa, justamente, sobre um resto de trilhos de uma antiga linha de bonde deixado a descoberto numa rua de Barcelona.
Esta cena me remeteu, quase imediatamente, ao cruzamento da Rua Tamoios com a Avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, onde, durante décadas, ficou um resto de trilhos de bondes cravado no meio da rua, como a revelar resquícios de tempos outros da capital mineira.
Enigmáticos para quem, como eu, já os vislumbrou recobertos pelo asfalto e no trança-trança dos automóveis e dos ônibus que tomaram, simbólica e literalmente, os lugares dos bondes, aqueles trilhos evocavam, melancolicamente, experiências jamais vividas, mas conhecidas ou imaginadas por relatos vários de pessoas que subiam a Bahia e desciam a Floresta, para lembrar a famosa frase do jornalista e compositor Rômulo Paes.
A mesma lembrança me assaltou, há algumas semanas, quando, no bairro do Recife, no centro histórico da cidade, me deparo com os mesmos trilhos, parcialmente recobertos pelo asfalto, a evocar não apenas o tempo dos bondes, mas também no trança-trança do transporte de mercadoria no porto da cidade. Estão lá, os trilhos estendidos no chão, sem que ninguém pareça nota-los ou dar a mínima para eles.
A memória voa e vai parar na tese de doutorado da saudosa Batistina Corgozinho – Continuidade e ruptura nas linhas da modernidade: a passagem do tradicional ao moderno no centro-oeste de Minas Gerais – orientada pelo saudoso Neidson Rodrigues e de cuja banca tive o prazer de participar.
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Em seu trabalho, Batistina analisa a importância da estrada de ferro Oeste de Minas para a modernização da região centro-oeste mineira, tendo como referência a cidade de Divinópolis. Não por acaso, a mesma cidade e o mesmo trem de ferro imortalizados nos poemas de Adélia Prado: “um trem de ferro é uma coisa mecânica/mas atravessa a noite, a madrugada, o dia/atravessou minha vida/virou só sentimento”.
Das ruas, das teses, dos poemas, das memórias de experiências vividas ou inventadas, sempre resta, para mim, a pergunta: para onde foram os bondes e os trens? Que fim tiveram nossos sonhos de modernidade? Só resta, do trem mineiro, o apito mineral, visceral, destrutivo… como lamentava Drummond (e para a funesta alegria de Zema et caterva):
“O maior trem do mundo
Leva minha terra
Para a Alemanha
Leva minha terra
Para o Canadá
Leva minha terra
Para o Japão
O maior trem do mundo
Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel
Engatadas geminadas desembestadas
Leva meu tempo, minha infância, minha vida
Triturada em 163 vagões de minério e destruição
O maior trem do mundo
Transporta a coisa mínima do mundo
Meu coração itabirano
Lá vai o trem maior do mundo
Vai serpenteando, vai sumindo
E um dia, eu sei não voltará
Pois nem terra nem coração existem mais.”
Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal