Por Gabriela Gonçalves
O texto de Luciano Mendes, publicado nesta coluna a semana passada, me atravessou sobremaneira! E por vários motivos: segunda feira à noite estava respondendo mensagens atrasadas no celular, questões do lançamento da nossa antologia de poesias, quando recebi uma chamada de um amigo me oferendo uma cortesia para ver o Grupo Corpo, último dia da curta temporada do novo espetáculo. Como moro perto do Palácio das Artes, e não recuso convites para coisas boas, reboquei meu filho de 17 anos na tentativa de encontrar um ingresso para ele também. Seria sua primeira vez.
Chegando ao teatro, peguei o meu ingresso na recepção, circulei pelo saguão, fui atrás de cambista, que não estavam por lá, nenhum ingresso sobrando, nenhuma desistência. Eu disse a ele que valia a pena o intento. “O Grupo Corpo é o melhor do mundo em dança contemporânea, e é de Beagá”, enchi a boca para falar. Conseguimos a última cortesia no último milésimo de segundo antes do terceiro sinal. Sentamos juntos na fila NN, a última do segundo setor.
Piracema nos arrebata! Desde a primeira cena, o espetáculo nos tira o ar e nos lança no leito do rio ou mar adentro. O cenário dourado parecia a encosta do rio, visto de dentro. E a música, meu Deus, que música! Uma profusão de sons nunca dantes ouvidos, ora melodiosos ora rasgados. E esses corpos-peixes lutando contra a maré, contra a correnteza, em “Pas de Deux ” e outras formações, belíssimos.
Por vezes, me vi prendendo a respiração como se eu estivesse em mergulho junto àqueles corpos-peixes, me esquecendo que os peixes respiram debaixo d’água. Em outro momento me senti ofegante. Eu tinha planejado ficar olhando também para as expressões do meu filho, que via a beleza do Corpo pela primeira vez, mas fiquei absorta, como hipnotizada pelo tempo que durou piracema. Como o corpo é criativo! E quando ativo faz misérias…. Me senti realmente invadida por esse leito dourado…
Arquivos
Gostaria de ter ficado com essa sensação de maravilhamento por dias, mas tive um episódio difícil e desafiador no dia seguinte, que me arremessou para um lugar de dor. Esqueci do Corpo. Me deparei com o meu próprio corpo, em minúsculo, sôfrego, angustiado e esvaziado. Tive, ao longo do dia, que solicitar uma força sobre humana para atravessar o dia. Para dar conta de ir contra a correnteza.
Olhando agora, fiz do dia um evento Piracema. À noite, na correnteza de água quente do banho, proferi para o azulejo: – Dane-se! E lá estava eu, acabando por desovar o que foi possível.
Luciano se refere também em sua crônica, que somos arquivos do que nos acomete. Concordo. Ah, Luciano, e diga-se de passagem, essas pessoas límpidas, que não retém nada, não existem. Elas mentem ou são muito distraídas. Não associam nada com nada.
O corpo, sua anatomia, sua fisiologia e essas marcas, aparentes ou não, são assuntos que permeiam minha poesia, ainda incipiente em volume. Vira e mexe o corpo está lá, ou fragmentos dele, padecendo ou florescendo nos versos. Tenho que me policiar para não ser repetitiva. Além de acupunturista, sou dentista há quase 30 anos, e exerço minha profissão com zelo e respeito.
Me deparo, diariamente, com dores físicas de alta intensidade. Com medos, desconfortos… E com a possibilidade de intercorrências. A dor de dente, que pressiona ou que lateja, é uma das piores dores que o ser humano pode experimentar. Ela nos faz sofrer. Talvez perca para o parto natural, mas muitos não passarão por essa. À dor de dente, todos estamos sujeitos. Observo ao longo dos anos, como a pobreza, a depressão, as condições adversas, ou simplesmente o afeto trocado por doces, deixa marcas nos dentes ou a ausência deles. E nas gengivas. E nos ossos…
Para além da ciência, e da evolução que explica tanta coisa, não sei para que tantos dentes. Muitas vezes me coloco na condição de leiga, na visão do paciente e me pergunto: como uma parte do nosso corpo, tão dura, resistente, mineralizada, que guarda inclusive nossa identidade genética, que sobrevive à incêndios e enterramentos, pode ter um nervo interno tão sensível e capaz de nos causar uma dor tão sofrível? Por que é tão vulnerável à bactéria da cárie? Não seria possível criar uma vacina para combater essa epidemia?
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Sua crônica, Luciano, comunga comigo. O corpo-memória do que vivemos, pode deixar marcas indeléveis no nosso corpo físico e sobretudo, com muita intensidade, nos labirintos de nossa alma. Os atropelos, as dores, os abandonos, a dureza. As cicatrizes invisíveis, não tangíveis. Há sempre algo que nos escapa. Como um poema…
Cartografia de um corpo vivo
Boto reparo no contorno dos ossos quando aparentes
bonita essa morfologia dura
e na carne que sobra onde saliente
se dobra
reparo os lábios sulcados
os argumentos que deles saem
e as cordas vocais que comportam silêncios
reparo os olhos vagos
parece que anoitecem antes da hora
reparo na íris refletindo o câmbio das estações
lágrimas que desaguam em rios internos
reparo as escápulas
o peso das coisas densidade muscular que o suporta
o que se assoma aos desertos e fúrias
a rosa dos ventos
latitudes
onde fica o norte
reparo a pele gretada
o volume das cicatrizes passadas
o pontilhado de sardas espaçadas
vestígios de pele sob as unhas
demoro-me
no subsolo da pele mapeio o veio
a explorar
as veias artérias arestas
sigilos que por ali peregrinam
em corrente sanguínea
reparo o respiro que faz subir descer
o ar comprimido no peito
eixo dos ventos
suspiros de horas desperdiçadas em monotonias
consumidas em quase e talvez
reparo enfim os invisíveis tratados
de terras e mares traçados
em corpos vivos
separados por fronteiras
Gabriela Gonçalves é escritora, acupunturista e odontóloga em Belo Horizonte.
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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal