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Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radic...ver mais

Entre o direito e o capital: a reforma urbana popular como projeto de luta 

A cidade se desenvolve de maneira desigual, com o acesso à terra, à moradia e aos serviços urbanos sendo condicionado pela lógica da acumulação de capital

Por Giovanna Ferreira*

Nos anos 1980, quando o modelo econômico desenvolvimentista e autoritário das décadas de 1960 e 1970 já demonstrava sinais de esgotamento, a articulação de diferentes forças sociais opositoras impulsionou um processo de democratização que culminou na Constituição Federal de 1988.

Sob influência dos movimentos populares urbanos, especialmente nas grandes metrópoles, a nova Constituição incorporou uma série de direitos sociais e foi amplamente reconhecida como um marco jurídico em prol da inclusão e da redução de desigualdades históricas. 

 No que diz respeito à política urbana, os artigos 182 e 183 da Constituição de 1988 estabeleceram diretrizes fundamentais para o ordenamento territorial, consolidando o princípio da função social da propriedade e garantindo direitos aos ocupantes informais.

Esses dispositivos constitucionais não foram apenas declarações de intenção: eles lançaram as bases jurídicas para a construção de uma agenda de Reforma Urbana mais ampla. O ápice dessa regulamentação veio com o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), que concretizou instrumentos para a efetivação do direito à cidade e a implementação desta agenda, vindo a se destacar enquanto uma das legislações urbanísticas mais importantes do mundo. 

O direito à cidade como disputa política 

O direito à cidade vai além do simples acesso a serviços e infraestrutura, abrangendo a participação ativa de todos os habitantes na construção, gestão e usufruto dos espaços urbanos.

Esse conceito implica uma transformação profunda nas relações sociais e no uso do território, exigindo uma reformulação radical das dinâmicas urbanas para garantir uma cidade democrática e inclusiva, onde as necessidades e aspirações coletivas sejam consideradas – sendo este o cerne da reforma urbana. 

No entanto, a urbanização, enquanto processo social, reflete as contradições da sociedade capitalista, na qual a produção e organização do espaço urbano são determinadas pelas relações de classe.

Nesse contexto, a cidade se desenvolve de maneira desigual, com o acesso à terra, à moradia e aos serviços urbanos sendo condicionado pela lógica da acumulação de capital, favorecendo determinados grupos enquanto marginaliza outros.

Assim, o direito à cidade se estabelece como uma reivindicação política contra essa estrutura excludente, desafiando as formas históricas de segregação socioespacial e propondo uma nova lógica de apropriação do espaço urbano baseada na justiça social.

Apesar disso, a efetividade das normas trazidas pela reforma urbana no Brasil enfrentou e enfrenta obstáculos políticos, institucionais e estruturais gerados pela apropriação seletiva do direito, apropriação essa que resulta em leis urbanísticas aplicadas de maneira a reforçar privilégios e desprezar populações vulneráveis. 

A Apropriação Seletiva do Direito e os Limites da Reforma 

 Embora tenha sido um avanço jurídico fundamental para a política urbana no Brasil, o Estatuto da Cidade enfrenta limitações em sua eficácia prática, devido à resistência de setores economicamente privilegiados e à falta de vontade política para sua plena implementação.

Vejamos exemplos concretos desse cenário: 

  • O Plano Diretor, previsto como um instrumento de planejamento participativo, deveria garantir a gestão democrática das cidades. No entanto, na prática, muitos Planos Diretores são elaborados sem uma efetiva participação popular, sendo capturados por interesses do mercado imobiliário, que influenciam as regras de uso e ocupação do solo em seu favor. 
  • O IPTU progressivo no tempo e o parcelamento compulsório são medidas que visam coibir a especulação fundiária e estimular o uso social da terra urbana. Porém, são raramente aplicadas pelos municípios, permitindo a manutenção de terrenos e imóveis vazios para valorização especulativa, em um país no qual o déficit habitacional alcança a marca de 6,2 milhões de domicílios. 
  • A Regularização Fundiária, essencial para garantir segurança jurídica à população que ocupa áreas informais, enfrenta entraves burocráticos e políticos quando se trata de assentamentos populares. Por outro lado, processos de legalização de empreendimentos privados irregulares são frequentemente acelerados por meio de medidas excepcionais e flexibilizações normativas, evidenciando um tratamento desigual no acesso ao direito à cidade. 

Esse cenário revela uma disputa política pelo sentido da reforma urbana: enquanto movimentos populares lutam por cidades mais justas, setores conservadores e o capital imobiliário buscam cooptar ou neutralizar os instrumentos. 

Reforma urbana popular em movimento: avaliar, organizar e transformar 

Nos últimos anos, a reforma urbana tem enfrentado sucessivas desarticulações, marcadas pela extinção do Ministério das Cidades em 2019, durante o governo Bolsonaro. Criado em 2003, o órgão desempenhou um papel central na articulação de políticas públicas voltadas para habitação, saneamento e mobilidade urbana.

Embora tenha sido reestruturado em 2023, no terceiro mandato de Lula, os avanços seguem ameaçados por projetos urbanos orientados pela lógica hegemônica do capital.

Em diversas regiões do país, os movimentos vêm denunciando que a marca estrutural da urbanização brasileira continua sendo a desigualdade socioespacial. A ausência ou precariedade de políticas públicas urbanas, como moradia, saneamento, mobilidade e trabalho, expõe milhões de pessoas a situações de extrema fragilidade.

Observa-se o avanço do capital sobre os territórios, tanto urbanos quanto rurais, com expressões como a financeirização da moradia, a especulação imobiliária, a mineração predatória e conflitos fundiários. Esses processos intensificam a expulsão das populações mais pobres dos centros urbanos e acentuam os conflitos ambientais e territoriais.

Essa realidade se agrava pela invisibilização institucional de sujeitos historicamente marginalizados, como o povo negro, as mulheres da classe trabalhadora, jovens periféricos, a população em situação de rua e trabalhadores informais. Esses grupos, embora sustentem a vida cotidiana das cidades, seguem sendo criminalizados, excluídos das políticas públicas e alvos de repressão.

E, mesmo diante das adversidades, a luta por uma reforma urbana de caráter popular segue ativa em diversas frentes. Nesse contexto, eventos de estruturação cumprem um papel fundamental. É o caso do IV Fórum Nacional do Br Cidades, que será realizado nos dias 1, 2 e 3 de agosto de 2025, na Escola Nacional Florestan Fernandes, com o tema Organizar a Luta e Construir a Reforma Urbana Popular.

O encontro reunirá militantes, movimentos populares e pesquisadores, todos comprometidos com o fortalecimento de uma reforma que tem como centralidade a vida, a dignidade e a justiça nas cidades. Seu avanço depende dessa articulação das organizações de base, da construção de alternativas populares e da afirmação de um urbanismo comprometido com a emancipação social. 

A luta continua, e seu eixo central permanece sendo a organização popular. 

*Giovanna Ferreira integra o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais e a rede Br Cidades.

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