Depois da publicação da Trilogia do anonimato (composta pelos livros: Poemas para se assobiar de longe, Apontamentos sobre o cultivo da poesia e O terceiro anonimato), e do notável Outono do (quase) novo, o poeta Ferreira Lima apresenta ao público o livro Espantos.
Publicado em 2024, Espantos insere-se na literatura brasileira contemporânea, sobretudo a produzida no Ceará, e merece atenção, porque estamos diante de um autor cuja poesia toca em acontecimentos do século XXI em início, enquanto volta-se para o século XX como experiência inevitável — e não menos dolorida. Com isso, temos uma poesia construída pela expurgação de questões existenciais e que admite, por vezes, um tom confessional, enquanto articula aspectos intertextuais e indaga-se, constantemente, sobre o fazer poético em sua essência.
Assim, os 22 poemas do livro trazem a mesma essência dos livros anteriores: construções imagéticas amplas em metáforas, reflexões metalinguísticas e articulações criativas no âmbito da forma e do conteúdo. Quanto à forma, os poemas apresentam versos livres, disposições inventivas de versos e linguagem esteticamente trabalhada (a criação de imagens poéticas é um dos maiores atributos do autor). Quanto ao conteúdo, os poemas discorrem sobre: especulações em torno da escrita poética (metalinguagem instigante nos vários poemas que tratam do fazer poético em sua essência), diálogos com outros gêneros textuais (como ocorre nas louvações epistolares a figuras como Che Guevara e Bob Dylan) e subjetivação de vozes líricas perpassadas por angústias existenciais, devotamento amoroso e intensa sensibilidade.
Destino, o primeiro poema do livro, prenuncia o itinerário poético de Ferreira Lima e aponta para o seguinte questionamento: qual seria o destino dos que se dispõem ao uso da palavra esteticamente trabalhada? Para a voz lírica desse poema, todo poeta atravessará sua Abbey Road um dia, mas também terá “um sinal fechado atravessando seu destino” ou “um espinho na carne”. Além disso, esse poema marcado pela metalinguagem apresenta uma das imagens mais notáveis (e contundentes) do livro, como é perceptível na estrofe seguinte:
todo poeta é um pássaro
que come as pedras
dos próprios rins.
(Lima, 2024, p. 24)
Um dos poemas mais instigantes do livro, Carta avulsa a Che Guevara, apresenta uma voz lírica que se dispõe a escrever uma carta para o revolucionário evocado no título. Ao longo do texto, são apontados temas como: Direitos Humanos, violência na sociedade brasileira, morte do congolês Moïse Kabamgabe, injustiças sociais, dentre outros. O poema é, ainda, uma espécie de desabafo, com ares de denúncia, como fica evidente nos versos:
pensei em te escrever
Camarada
pra desabafar um pouco
dizer que os direitos humanos
estão cada vez mais desiguais
por cá
(Lima, 2024, p. 86)
No último poema do livro, intitulado Estação antiga do trem de ferro, temos um cenário nostálgico que envolve uma cena de família: para a profunda tristeza da mãe, e saudade inevitável dos filhos, o pai se vai no trem. A simbologia do trem em partida, que desfaz a estrutura da família, cria uma atmosfera de desarticulação saudosista e, também, de desencanto, como é apontado na última estrofe:
(só eu o mais velho sabia
que meu pai não ia voltar
tão cedo)
(Lima, 2024, p. 123)
No texto Poemas para as ruas escuras do país, Mona Gadelha diz que: “Os poemas de Ferreira Lima são canções da estrada. O caminho que se abre para andarilhos, libertários, transgressores e românticos”. É pertinente essa observação, sobretudo se considerarmos os temas abordados pelo poeta: angústia diante da impotência humana de resolver problemas sociais; ânsia por justiça e por liberdade; experiências de dor que a existência impõe e torna-se material para a escrita; necessidade de criar, pela palavra esteticamente configurada, um caminho possível de catarse e de transgressão; sentimentos vivenciados com profundidade; o cotidiano do século XXI sob um olhar crítico, dentre outras relevantes discussões.
Estamos diante de um autor contemporâneo, que nasceu e vive no Ceará, e que tem uma obra poética espantosa (para fazer alusão ao título da que apresento aqui), tanto pela honestidade dos debates que apresenta, quanto pela singularidade de seus poemas (da palavra aos versos, tudo neles instiga à apreciação). Ler e reler a obra de Ferreira Lima é uma experiência de grandes aprendizagens — e tenho dito!
Ferreira Lima nasceu em Jucás (CE), mas vive em Sobral (CE) desde a infância. Tem graduação e pós-graduação em História, Língua Espanhola e Engenharia. Publicou: O guardador de raízes (2018), Poemas para assobiar de longe (2019), Apontamentos sobre o cultivo da poesia (2021), O terceiro anonimato (2022), Outono do (quase) novo (2023) e Espantos (2024).
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