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O cerco às atletas trans e a lógica do pânico moral

Esporte se tornou campo de batalha contra corpos e identidades de gênero dissidentes

Os eventos esportivos, por vezes celebrados como espaços de amizade, superação e fair play, encontram-se no centro de uma tempestade política e normativa que ameaça silenciar vozes dissidentes, especialmente quando estão representadas em corpos fora do binário, como no caso de mulheres trans e intersexo. A recorrente justificativa da “proteção das mulheres” tem sido mobilizada, ao longo da história da institucionalização do esporte, de maneira perigosa para interditar a participação de atletas dissidentes no esporte, transformando um discurso de justiça para a categoria feminina em uma ferramenta de exclusão.

Uma das novas ordens executivas de Donald Trump, assinada em fevereiro deste ano e batizado de forma infame como “Keeping Men Out of Women’s Sports”, é o sintoma mais gritante desse atraso: ele proíbe meninas e mulheres trans de competirem em qualquer modalidade esportiva e de frequentarem espaços femininos, como banheiros de educação física, mesmo nos níveis escolares e amadores.

A retórica de proteger as mulheres não é nova – ela ecoa as mesmas ansiedades de pureza, tutela e vigilância que sustentaram por décadas os chamados testes sexuais em Jogos Olímpicos e em competições internacionais. Se antes essa biologia foi definida por gônadas, características sexuais secundárias, cariótipos e taxas hormonais; hoje falamos sumariamente em “sexo biológico”. Como se fosse uma materialização autoexplicativa da verdade biológica da espécie. De tal forma que, mais uma vez, essa lógica dimórfica se renova em tons mais implacáveis.

A recente decisão da Suprema Corte do Reino Unido, julgada alguns dias atrás, exclui mulheres trans da Lei da Igualdade de 2010, uma base normativa que regulamenta a proteção contra a discriminação no local de trabalho e na sociedade em geral, além de determinar o acesso a espaços e serviços específicos para mulheres, como vestiários, albergues para sem-teto, serviços médicos e prisões. Nesse contexto, a biologia é imutável. Os efeitos serão devastadores. É mais uma decisão que deve ser enquadrada como um marco infeliz desse recrudescimento de direitos que também se alimenta do mundo esportivo.

Em vez de ampliar o conceito de mulher para incluir identidades e experiências de mulheres trans que existem materialmente e que precisam de proteção e de reconhecimento legal, o tribunal escolheu enrijecer a norma, reforçando uma concepção de feminilidade biologizante, essencialmente binária e centrada na heterossexualidade. Sem nuance.

O que se anuncia nesses movimentos (que não são somente conservadores ou religiosos) é uma moralização incisiva sobre quem pode ou não existir em determinados espaços. E, no fim, quem pode ser reconhecido como sujeito de direitos. Mesmo dentro das arenas jurídicas e legislativas, percebemos que há um pânico moral que se utiliza do esporte como campo de batalha contra corpos e identidades de gênero dissidentes.

O alvo preferencial são atletas que possuem variação de intersexualidade e mulheres trans, frequentemente representadas como ameaças à integridade e à justiça competitiva da categoria feminina, mesmo quando recentes pesquisas apontam desvantagens enfrentadas por elas em diversos contextos atléticos. Como o estudo transversal de Blair Hamilton e colegas (2024), financiado por uma bolsa de pesquisa concedida pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), no qual examinam o desempenho laboratorial de diferentes atletas, sendo 19 homens cisgêneros, 12 homens transgêneros, 23 mulheres transgêneras e 21 mulheres cisgêneras.

Alguns dos testes foram estabelecidos para comparar a diferença da força, da função pulmonar ou da composição corporal de cada amostra. Os resultados indicam que as mulheres trans, competindo em condições amadoras ou semiprofissionais, tiveram piores respostas nos exames laboratoriais que os outros grupos. São pesquisas assim que nos devem alertar contra proibições preventivas e exclusões de elegibilidade esportiva que não se baseiam em evidências científicas e laboratoriais específicas para cada esporte.

Reforçar um banimento sem evidências apropriadas para cada modalidade é uma maneira de reproduzir discriminações com base em pânico moral e ignorância biológica. Aqui no Brasil essa retórica vem inflamando novos projetos de leis que buscam endurecer nossas frágeis jurisprudências – usualmente consolidadas a partir de entendimentos recentes votados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – no que tange aos direitos LGBTQIA+.

Desde 2019, tramitam na Câmara dos Deputados ao menos 18 projetos de lei apensados ao Projeto de Lei (PL) 2200/2019, de autoria do Pastor Sargento Isidório (Avante-BA), todos com o objetivo de proibir mulheres trans de participarem de competições esportivas em categorias femininas conforme sua identidade de gênero. Inspirados diretamente em agendas de extrema direita e discursos conservadores internacionais, esses projetos ameaçam não apenas o direito à prática esportiva, mas também a dignidade das vidas trans em nosso território.

Historicamente, o esporte tem servido como laboratório para a tutela de corpos femininos, especialmente com o controle dos tipos de feminilidade e com a reprodução da heterossexualidade compulsória. Mais recentemente, essa imposição também aparece com o reforço da cisnormatividade. Essa crença de que corpos e identidades devem se estruturar a partir (e buscando) o mesmo destino biológico, sem variações e diversidades.

Nesse cenário, categorias como “feminino” e “masculino” passam a ser policiadas, não em nome de uma justiça esportiva, mas de uma moral mais ampla que deseja a exclusão da diferença. Atletas intersexo como Caster Semenya e Dutee Chand foram empurradas para fora das pistas de atletismo com justificativas que beiram a eugenia contemporânea.

No caso de atletas trans, usualmente elas não chegam no mais alto rendimento, já que os obstáculos são enormes para praticarem uma modalidade de forma competitiva; e, na eventualidade de conseguirem, a pressão é tamanha que não resistem por muito tempo, como a neozelandesa Laurel Hubbard, a primeira atleta trans a se qualificar para os Jogos Olímpicos, em Tóquio, e logo depois se aposentar.

Essas decisões e políticas desconsideram que o esporte não é, nem nunca foi, um campo neutro. Qualquer evento esportivo representa um lugar onde as disputas por pertencimento, reconhecimento e cidadania se encenam com muita concretude. A tentativa de excluir mulheres trans e intersexo da categoria feminina parte de uma concepção estreita do que significa ser mulher – uma concepção que ignora as multiplicidades corporais, históricas e culturais que sempre atravessaram a experiência feminina.

O que se exige das mulheres trans e intersexo é não apenas uma adequação normativa, dentro de um cenário esportivo que ainda é binário, mas um apagamento completo de suas corporalidades, vivências e performances. Portanto, rejeitar a presença de atletas dissidentes no esporte seria como recusar o próprio processo de ampliação das categorias de proteção social. A luta por inclusão e reconhecimento não nega a especificidade dos desafios e das opressões vividas por mulheres cis, mas amplia esse mesmo horizonte de quem pode ser protegido.

Insistir em uma concepção única, fixa e biologicamente determinada de mulher é negar os avanços duramente conquistados por lutas progressistas que, ao longo do último século, buscaram ampliar os contornos da dignidade humana. O esporte, embora marcado como um ambiente de violências e exclusões, também pode ser um caminho de socialização, construção de habilidades, superação de limites e redefinição de pertencimento, tanto social como identitário.

Nossa tarefa política mais urgente se faz nesse encontro dos embates contemporâneos: no esporte, na ciência e na política. Não apenas para proteger os direitos sexuais e reprodutivos que vêm sendo instrumentalizados por uma agenda de ódio contra as mulheres, mas para garantir que essa mesma categoria esteja sempre em transformação, com toda sua nuance, complexidade e pluralidade, para sermos mais e cada vez mais livres.

*Barbara Gomes Pires é antropóloga, atualmente pesquisadora de pós-doutorado em Antropologia Social, no Museu Nacional (UFRJ). Estuda regulações esportivas para a categoria feminina. Atuou em duas consultorias para a Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres Brasil, utilizando o esporte como motor de transformação social e promoção da igualdade de gênero.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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