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Periferia no centro: a urgência da adaptação climática nas comunidades urbanas do Recife

Precisamos transformar escuta em política, diagnóstico em orçamento, promessa em ação. Adaptação climática precisa ser prática cotidiana nas periferias.

*Em co-autoria com Guilherme Simões, Secretário Nacional de Periferias do Governo Federal.

Nenhuma mãe escolhe dormir sabendo que a qualquer momento a chuva pode levar sua casa. Ninguém sonha em criar sua família dentro de um alagado ou tendo uma encosta instável como vizinha. Ainda assim, mais de um milhão de pessoas em Pernambuco vivem nesses contextos. Quando falamos do Recife, a cidade é a com o maior número de pessoas vivendo em vulnerabilidade climática no estado: são mais de 206 mil – quase 14% da população! – expostas aos riscos de deslizamentos, enchentes e também ao calor extremo.

Essa realidade não nasceu por acaso. É consequência de um processo histórico de exclusão urbana, desigualdade social e racismo ambiental. Enquanto bairros ricos concentram infraestrutura, segurança e áreas verdes, as populações mais pobres foram empurradas para os morros, para as beiras de rios e para os vazios urbanos esquecidos pelas políticas públicas. A área de risco é uma construção social, como nos ensina a luta das periferias. Ela nasce das escolhas políticas que decidem quem vai viver com tranquilidade e quem vai conviver com a insegurança constante.

Foi com essa consciência que nasceu a articulação entre a Caravana das Comunidades, iniciativa do nosso mandato, no Recife; e a Caravana das Periferias, da Secretaria Nacional de Periferias, do Ministério das Cidades. Um esforço conjunto que une o poder local e federal, parlamentares e gestores, comunidades e movimentos sociais, para encarar um desafio urgente: fortalecer a adaptação climática para as periferias.

Crise climática e as periferias

A crise climática não é neutra. Ela não atinge a todos da mesma forma. Ao contrário: ela amplifica desigualdades que já existem e aprofunda seus efeitos. Quando as chuvas chegam, as ruas e as avenidas nobres alagam e o trânsito piora, mas no morro está o risco de desabamento e de perda de vidas. Quando o calor extremo aperta, são as casas de telhas baixas, sem ventilação, sem sombra ou área verde que sofrem mais. Quando o volume dos rios sobe além do normal, as pessoas nas palafitas perdem seus pertences.

Esse fenômeno tem nome: racismo ambiental. Ele se manifesta quando a cidade é planejada para precarizar e excluir o povo preto, pobre e periférico, enquanto garante conforto e privilégios para uma minoria. Lutar contra o racismo ambiental é lutar por justiça social e climática. Significa enfrentar as raízes da desigualdade para transformar a relação das cidades com seus territórios.

Para um problema desse tamanho não existe solução mágica vinda de cima para baixo. É por isso que iniciativas como os Planos Comunitários de Redução de Riscos e Adaptação Climática (PCRA) são fundamentais. Planos construídos em assembleias, rodas de conversa e articulação com os territórios, traduzindo a experiência de quem mora e resiste nas periferias. Esses planos devem ser tratados como política pública.

A Caravana das Comunidades – contra o racismo ambiental foi pensada com isso em vista: garantir escuta ativa, mapear demandas reais e transformar a voz popular em ação parlamentar. Com encontros, conversas, visitas de campo e articulação direta, ela se torna uma ferramenta de pesquisa, documentação, resistência, mobilização e construção de alternativas concretas.

A chegada da Caravana das Periferias a Pernambuco representa um momento simbólico e prático muito importante. Coordenada pela Secretaria Nacional de Periferias (SNP), essa iniciativa do Governo Federal tem como missão reconhecer agentes territoriais, monitorar investimentos e fortalecer a integração das periferias às políticas nacionais. Quando essa estrutura se junta à Caravana das Comunidades no Recife, cria-se uma poderosa aliança que amplia vozes, soma metodologias e expande os impactos.

Essa cooperação entre os diferentes níveis de governo é um exemplo concreto de governança popular. Esse modelo coloca as comunidades no centro, não apenas como beneficiárias, mas como protagonistas.

A luta por adaptação climática inclusiva não é apenas uma questão técnica, ambiental ou urbanística. É uma luta por vida, dignidade e justiça. Estamos falando de garantir moradia segura, regularização fundiária, saneamento básico, espaços verdes, infraestrutura resiliente. Estamos falando de políticas públicas que tenham como prioridade quem historicamente foi deixado de lado.

Estamos também disputando o modelo de cidade. Não queremos uma cidade que expulse os pobres para abrir espaço para a especulação imobiliária. Queremos uma cidade que ofereça segurança, qualidade de vida e oportunidades para todas as pessoas.

Participação popular como pilar das soluções

Se há uma certeza que as periferias nos ensinam, é esta: nada sobre nós sem nós. Participação popular não é uma formalidade e nem um favor, mas um direito democrático e uma condição indispensável para que as soluções sejam eficazes. Não há como enfrentar desastres climáticos, enchentes, deslizamentos, ilhas de calor ou insegurança hídrica sem ouvir quem vive diretamente essas realidades e, em muitos casos, já têm soluções para a superação dessas adversidades. A favela constroi políticas públicas todos os dias.

A experiência da Caravana das Comunidades, iniciada neste mês de maio, tem esse horizonte. Cada roda de conversa, cada escuta com moradores, cada visita aos territórios gera um diagnóstico, com um mapa de demandas que irão ser traduzidas em ações no Legislativo municipal.

A Caravana das Periferias, por sua vez, cumpre um papel essencial no que chamamos de perenização das políticas públicas. Em um país marcado por descontinuidades, pela desigualdade e pelo desmonte de iniciativas do último governo, o acompanhamento do Governo Federal nos territórios garante monitoramento, fiscalização e continuidade das ações.

O Programa Periferia Viva é uma aposta estratégica na transformação dos territórios populares, através da articulação de políticas e ações para urbanização e infraestrutura, regularização fundiária, melhorias habitacionais e participação popular.

Reconhecer os atores sociais nas comunidades é central para qualquer política de adaptação climática. As pessoas em seus territórios detêm um conhecimento que gabinetes, secretarias e ministérios muitas vezes não acessam. Integrá-las às decisões, ouvi-las ativamente e garantir recursos para suas iniciativas é inteligência política. O desafio do poder público não é apenas abrir espaço para ouvir, mas também respeitar o que foi dito e transformar essas escutas em ações concretas.

Isso significa, por exemplo, garantir orçamento para obras de drenagem, contenção de encostas, ampliação de áreas verdes e saneamento em áreas periféricas. Significa respeitar os Planos Comunitários de Redução de Riscos e Adaptação Climática como instrumentos legítimos e vinculantes. Significa enfrentar interesses econômicos que lucram com a especulação e a precarização. E significa, acima de tudo, colocar a vida no centro, entendendo que precisamos eliminar riscos, não pessoas.

O momento que vivemos exige um novo pacto social. Ou estamos ao lado das comunidades que resistem, ou por omissão estamos fortalecendoos processos que as destroem. A adaptação climática não pode ser um projeto técnico restrito a especialistas. Precisamos de um compromisso coletivo, radicalmente democrático e popular.

Recife, com sua histórica desigualdade urbana, tem a chance de se tornar um exemplo para o Brasil e para o mundo. Não à toa, a cidade foi palco da Conferência Internacional sobre Adaptação Comunitária às Mudanças Climáticas (CBA), realizada pela primeira vez na América Latina.

Precisamos transformar escuta em política, diagnóstico em orçamento, promessa em ação. Precisamos garantir que a adaptação climática não seja apenas um debate nos fóruns internacionais, mas uma prática cotidiana nos morros, nas palafitas, nos bairros periféricos.

Combinando o aprendizado das Caravanas, a articulação entre governos e comunidades, e a mobilização popular, podemos construir uma cidade onde nenhuma vida seja descartável. Uma cidade onde nenhuma pessoa viva sob risco porque foi empurrada para lá. Uma cidade onde o direito à vida e à dignidade não seja privilégio de poucos, mas patrimônio de todos.

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