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Neste espaço, o jornalista Rogério Viduedo vai discutir o uso da bicicleta sob a perspectiva do trabalhador, da trabalhadora, pois é uma ferramenta de transformação social e de combate tanto das mu...ver mais

Publicidade da ONU nas ruas brasileiras denota fracasso do país na segurança viária

Para quem pedala ou caminha, tratar da segurança viária significa tratar da própria vida

Você que circula pelas áreas movimentadas de São Paulo talvez note que as propagandas dos relógios de rua exibem uma campanha diferente. Nos próximos dias, alguns rostos relativamente conhecidos para brasileiros como o tenista Novak Djokovic, a modelo Naomi Campbell ou o piloto de Fórmula 1 Charles Leclerc serão estampados nesse mobiliário com dizeres alertando para motoristas não dirigirem sob o efeito de álcool, com sono, em altas velocidades, olhando para o celular ou mesmo de pilotar uma moto sem capacete. 

É que estreou aqui na capital paulista a continuação de uma campanha global pela diminuição das mortes e lesões de trânsito promovida desde 2023 pela Organização das Nações Unidas com apoio da empresa multinacional de mídia externa francesa, JCDecaux, que já alcança mil cidades nos 80 países mais problemáticos em termos de violência de trânsito. É intitulada, “Faça uma escolha segura”. 

O anúncio do lançamento aconteceu semana passada aqui em São Paulo, no escritório da Unicef, agência da ONU que cuida de crianças e adolescentes. Faz todo o sentido. Essa parcela da população de 5 a 29 anos compõe a grossa maioria dos óbitos e lesões. Quem veio pessoalmente participar do evento foi o enviado especial das Nações Unidas para Segurança Viária, o francês Jean Todt. Ele é conhecido por aqui por ter sido o chefe da equipe Ferrari de Fórmula 1 durante as passagens dos pilotos Rubens Barrichello e Felipe Massa. Estava acompanhado da chefe da Unicef no Brasil, Flávia Antunes Michaud e do executivo da empresa de mídia, Jean-Charles Decaux. 

Uma campanha publicitária desse porte não é barata. Uma semana de exibição de anúncios em um circuito de 100 relógios urbanos que tem avenidas Paulista e Brigadeiro Faria Lima no roteiro não sai por menos de 300 mil reais. Mas nem a ONU nem a cidade vão pagar por isso, nem aqui, nem em nenhum lugar. A ação é pro-bono e o mérito é todo de Jean Todt, que antes de ser representante das Nações Unidas para o assunto, foi também presidente da Federação Internacional de Automobilismo (FIA) e possui contatos poderosos. Desde 2015, ele vem peregrinando pelo mundo levando sua mensagem sobre a epidemia silenciosa das ruas, título do livro que publicou recentemente, ainda sem tradução para o português.

A vacina, segundo Todt, tem receita bem conhecida. É composta por medidas possíveis de serem tomadas desde que haja disciplina e boa vontade da sociedade e dos governantes. Inclui a fiscalização para redução de velocidades, o uso de cinto de segurança inclusive nos bancos traseiros, a penalização de motoristas embriagados e a obrigatoriedade do uso de capacetes para motociclistas, além de outras ações óbvias, mas que ainda são desconsideradas por muita gente, tal como o uso de cadeirinha para crianças, melhorias no desenho e sinalização viária, maior tempo de resposta dos serviços de emergência, melhoria de calçadas para pedestres, criação de mais ciclovias e melhoria dos transportes públicos. 

A chegada de tal campanha no Brasil, todavia, não é boa notícia, pois é uma mensagem bem dura para nossos secretários de trânsito, sejam da União, estados ou municípios. Denota que temos sido incapazes de oferecer segurança para quem se desloca nas cidades e que estamos falhando no cumprimento da meta 3.6 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável que prevê a redução de 50% nos óbitos de trânsito até 2030. Significa que precisa vir a ONU aqui em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasil, principais mercados da JCDecaux, espalhar cartazes para avisar os brasileiros de que as coisas não estão nada bem. Estima-se que temos gastado quase 5% do PIB com essa epidemia, que envolvem os regate, o tratamento de saúde e as perdas de produtividade de quem se envolveu nos sinistros. É triste ver que ao invés de diminuir, nossos índices estão aumentando. 

No Brasil, em geral, os índices vinham caindo ao longo da última década, mas passaram a subir a partir de 2020. Segundo o Atlas da Violência do IPEA, houve 35,9 mil óbitos no trânsito em 2023, fazendo a taxa de mortes por 100 mil habitantes ultrapassar a marca de 17, algo não visto desde 2018. Em 2020, o País criou o Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões de Trânsito (PNATRANS) para trabalhar na redução dessas mortes pela metade até 2030 (com base nos dados de 2018), o que seria um índice de aproximadamente 8 por 100 mil. 

Tal meta está bem distante de ser alcançada, visto que estamos diante de governantes negacionistas como o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, que decidiu interromper a expansão de radares de trânsito na cidade para não “estimular a indústria da multa”. Assim como no Brasil, a violência de trânsito São Paulo também voltou a subir a partir de 2020 e no ano passado os óbitos ultrapassaram a marca de 1.000 casos, sendo quase a metade de motociclistas.

Para quem pedala ou caminha, tratar da segurança viária significa tratar da própria vida. Aqui, 60% desses óbitos são formados por pedestres, ciclistas e agora motociclistas. Nós não temos nenhuma lataria para nos proteger dos impactos externos. Exigir que governantes reforcem a fiscalização de velocidades ou do abuso de álcool ao volante e que deputados legislem para aumentar a segurança dos veículos também para quem está fora deles é de suma importância para nossa sobrevivência. Vale lembrar que se eu for atropelado por um carro com velocidade de até 50 quilômetros por hora, ainda tenho chance de sobreviver. Acima disso, é morte certa. Mas muitas cidades ainda mantêm limites de velocidade acima disso.  

Eu perguntei para Jean Todt o que ele achava de exigir que fabricantes colocassem limitador de velocidades em motocicletas como forma diminuir as mortes provocadas com esse tipo de veículo. Ele respondeu que na França, por exemplo, patinetes, bicicletas e motos elétricas leves já saem de fábrica com tais dispositivos que param de acelerar quando a velocidade chega a 25 quilômetros por hora. Mas isso é algo que ele pode sugerir aos governos com quem se senta para conversar, mas que cada País tem autonomia e liberdade para legislar como acha melhor.

O executivo da JCDecaux por sua vez, tocou num assunto sensível. Alertou para a ausência do setor privado nas ações de segurança do trânsito. Para ele, fabricantes de pneus, de combustíveis, montadoras e outros beneficiários do transporte, por exemplo, deveriam se unir num ecossistema para combater a violência viária, e que ele está tentando atrair essa atenção ao participar dessa extensa campanha que não tem data para terminar e que também está sendo estendida para outros países das Américas, tais como México, Guatemala, Panamá e Colômbia.

Eu também pergunte o porquê de não haver nenhum brasileiro ou brasileira na campanha. Jean Todt disse que iria convidar Felipe Massa em um encontro que teriam aqui em São Paulo, e que ele talvez participe ao nível nacional. Há ainda a possibilidade de termos Rebeca Andrade, medalhista de ouro na ginástica artística em Paris, pelo fato de haver apoio do Comitê Olímpico Internacional. Vamos aguardar. 

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