De meu saudoso pai, mestre de escola, com um método semelhante ao de Paulo Freire, educava os alunos e alunas de Planalto-Concórdia-SC, sempre com esse conselho: “Nunca se vinguem; a vingança pertence a Deus; e confiem sempre na divina Providência”. Esse ensinamento permanece como legado imorredouro de seus alunos, suas alunas e de seus onze filhos.
As Escrituras sempre afirmam: “A Deus cabe a vingança”. É o juízo derradeiro de quem, de fato, definitivamente julga o nosso projeto de vida. Não nos cabe julgar as pessoas, pois possuem algo do mistério que só Deus penetra. A nós cabe julgar os atos concretos pois estes têm objetividade e podem ser ajuizados.
Isso se aplica ao caso rumoroso do julgamento da organização criminosa que tramou um golpe de Estado tendo como cabeça o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro. Foram processados e julgados. Não houve espírito de vingança por parte dos magistrados, mas a aplicação estrita das leis e da Constituição: 27 anos e três meses de prisão em regime fechado. Fora condenado apenas por cinco crimes, objetivamente comprovados, entre tantos que cometeu.
Por mais que procuremos, não deixou legado positivo nenhum. Em seu governo irrompeu o império da maldade oficializada e popularizada. Seu lema foi claramente expresso numa reunião com o grupo ultra-conservador dos EUA, o Tea-Party: “Não pretendo construir nada, mas destruir tudo para recomeçar outra história”. E, de fato assim fez, destruiu tudo o que pôde sem nada construir de positivo em favor do povo.
Diria que as várias sombras que maculam nossa história ganharam com suas práticas malévolas, plena densidade:
- A mácula do genocídio indígena: deixou morrer centenas de yanomami entre outros;
- A nódoa do escravismo de 350 anos, sobre o qual suas palavras foram: “pessoas negras foram legalmente escravizadas em função de sua massa corporal”; os quilombolas “não servem para nada, nem para procriador”;
- A mancha do colonialismo: o Brasil que Bolsonaro venera é o Brasil colônia, subserviente e submisso, que bate continência para a bandeira americana, que exalta a tortura e o fuzilamento de inimigos, que descuidou totalmente de nosso maior patrimônio natural, a Amazônia e o Pantanal;
- O estigma da ocupação do Estado pela classe dominante: Bolsonaro, não sabendo administrar nada, entregou à Câmara Legislativa funções que seriam do Executivo, como a gestão do Orçamento; não apenas deu rédeas à acumulação das classes abastadas no campo e na cidade como militarizou grande parte dos aparatos de Estado;
- Ignominiosos foram os atos de negacionismo da vacina contra o Covid-19, tornando-se responsável por 430 mil mortes evitáveis dos 716.626 vitimados; ofendeu as vítimas imitando a morte de uma delas, com boca aberta em busca, desesperada, de oxigênio; considerou a pandemia “uma gripezinha” e tratava a dor dos que perdiam entes queridos como “mero mimimi”; debochou dos familiares que não podiam acompanhar seus mortos aos cemitérios improvisados;
- Teve um desprezo soberano dos pobres: ”só têm uma utilidade, a de ter o título de eleitor e o diploma de burro… não prestam para nada, na sua grande maioria não servem para futuro de nosso país”;
- Mostrou-se inimigo da ciência, da educação, dos direitos humanos, da pesquisa científica, regredindo o país aos tempos anteriores ao iluminismo;
- Atos dos mais perversos foram aqueles que deseducaram o povo, com palavrões de baixo calão, com manifesto de ódio à população LGBT+ e com clara misoginia, a ponto de se envergonhar por ter tido uma filha, “fruto de uma fraquejada”; difundiu fake news e uma onda de ódio que dividiu famílias e tornou tóxicas as relações sociais;
- Cometeu explícita manipulação do discurso religioso, contradizendo a mensagem religiosa por suas atitudes verdadeiramente farisaicas e para fins diretamente eleitoreiros, o que contradiz a natureza laica do Estado;
- Por fim, algo inaudito e de suma atrocidade em nossa história de 135 anos de República, foi o propósito de assassinar o ministro do STF Alexandre de Moraes, de envenenar o presidente Lula e de seu vice, Geraldo Alckmin.
Estes atos merecem a repulsa de uma mente minimamente humana e sensível. É aqui que entra a justiça que julga consoante o Contrato Social firmado pela Constituição de 1988 e pela leis do Código Penal. Sei que o conceito de justiça, desde os clássicos gregos com Sócrates, Platão e Aristóteles até aos modernos John Rowls e MacIntyre, é carregado de discussões. Não cabe neste lugar assumir uma de suas versões ou definições. Para o caso de Bolsonaro basta-nos a aplicação da Constituição e do Código Penal que definem como crimes os atos que ele e a organização criminosa perpetraram. Cabe enfatizar que não se trata de uma questão de cálculo, mas de princípio, de pura e simples aplicação das penas penais.
A Constituição de 1988 é límpida quando define a abolição violenta do Estado Democrático de Direito: “Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Bem como a definição de golpe de Estado: “Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”.
O veredito da Primeira Turma do STF foi claro face aos atos praticados por Jair Messias Bolsonaro e pela organização criminosa. Tudo isso foi organizado e planejado como tentativa frustrada que, de por si, já constitui crime. A sentença foi adequada aos crimes e por isso justa: “Condeno o réu Jair Messias Bolsonaro pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado às penas de 27 e 3 meses de reclusão”, declarou o STF no dia 11 de setembro de 2025.
Pela primeira vez em nossa história de golpes e contragolpes que se levou às barras dos tribunais, um ex-presidente, vários militares de alta patente e outros cúmplices.
Como foi comentado por jornais estrangeiros especialmente dos EUA: a democracia brasileira e suas instituições se mostraram mais sólidas do que a estadunidense, sempre tida como realidade de referência.
Ficou claro para a comunidade jurídica e pela mais alta Corte: “Não pode ter indulto, não pode ter anistia, não pode ter perdão judicial para alguém que tentou derrubar a democracia”. O país deu um salto de qualidade rumo à sua solidez e à maturidade. A grande maioria da população deu um profundo suspiro de alívio. Enfim fez-se justiça!
*Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor e publicou Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.