Por Mana Galvão*
Estar em espaços culturais durante a maternidade é, muitas vezes, um exercício de negociação. Somos empurradas para a margem como se só pudéssemos pertencer ali ao deixar os filhos com alguém. Mas e quando isso não é possível? Ou quando, simplesmente, queremos viver aquela experiência com nossos filhos?
Recentemente, compartilhei nas redes um episódio de limitação de acesso em um espaço cultural de João Pessoa (PB). Recebi dezenas de relatos semelhantes. Mulheres constrangidas, impedidas de exercer um direito básico: participar da vida cultural com seus filhos.
O episódio aconteceu quando fui assistir a um espetáculo local. Após trocar minha filha em um espaço improvisado, perguntei sobre os ingressos e ouvi: “Ela não pode entrar.” A justificativa? A classificação indicativa. Mas vale lembrar: a classificação é uma orientação, não uma proibição. O próprio Ministério da Justiça reforça que cabe às famílias decidirem sobre o que seus filhos podem ou não assistir. Ainda assim, esse instrumento é constantemente mal interpretado.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), inclusive, garante o direito à cultura, ao lazer e à convivência familiar. Em nenhum momento proíbe a presença de crianças acompanhadas por responsáveis em espetáculos culturais, com exceção de locais como cassinos, o que não era o caso. Disseram que a peça usava recursos sensoriais que poderiam ser desconfortáveis para a bebê. No entanto, não seria meu papel, como mãe, avaliar isso? E por que essas informações não estavam na divulgação, considerando também o público autista, por exemplo?
A justificativa final foi que, caso eu precisasse sair durante a apresentação, teria que cruzar o palco. Desisti de argumentar. A cada nova explicação, ficava mais nítido que não havia espaço para nós. O incômodo parecia ser menos com o bem-estar da criança e mais com o “risco” de sua presença interferir na cena. Como se a criança fosse, por si só, uma ameaça ao espetáculo.
Manifestei o ocorrido pelos canais oficiais da companhia, mas a resposta institucional reafirmou a postura. Nenhuma retratação, apenas justificativas sustentadas por um estereótipo sobre bebês: o de que serão, inevitavelmente, incomodados e incômodos. E ainda alertaram que, em toda a temporada, nenhum adulto precisou sair no meio da peça, como se isso fosse um mérito.
Essa lógica gera um medo antecipado. Várias pessoas, inclusive pessoas com deficiência, me contaram que passaram mal nesse mesmo espaço, quiseram sair, mas não o fizeram com receio de “estragar a peça”. Essa dinâmica inverte a lógica da experiência artística e transforma o espectador em ameaça. A arte não pode ser um espaço reservado apenas aos corpos silenciosos e imóveis, essa ideia elitista exclui quem não se suporta o desconforto de se moldar à rigidez da cena.
Esse silenciamento é estrutural. Ele está nos espaços sem fraldário, nos teatros sem saídas acessíveis, nas propostas de acessibilidade que não consideram mães e crianças como público legítimo.
Quando escolhi levar minha filha ao espetáculo, foi porque acredito no nosso direito, como família, de ocupar os espaços culturais. A recusa que sofri ignora a legislação e revela uma visão excludente da maternidade e da infância. Outras mães também relataram experiências parecidas: foram desencorajadas, impedidas ou se sentiram julgadas por estarem com seus filhos em espaços culturais. Esse silenciamento é estrutural. Ele está nos espaços sem fraldário, nos teatros sem saídas acessíveis, nas propostas de acessibilidade que não consideram mães e crianças como público legítimo.
Ter acesso à arte e ao lazer enquanto se é mãe não deveria ser um privilégio, mas ainda é. Participar de uma atividade cultural, sozinha ou em família, exige uma rede de apoio que muitas vezes não está disponível, especialmente para mulheres da classe trabalhadora. Deixar uma criança em segurança demanda tempo, recursos e a ajuda de outras pessoas, quase sempre outras mulheres. Mesmo quando superamos esses desafios, ainda somos barradas.
Excluir a criança é excluir quem cuida dela. E já passou da hora de perguntarmos: quem está fora da plateia e do palco? Quem falta nas nossas políticas de acesso? Quando me foi negado o direito de decidir permanecer com minha filha, me senti deslocada do meu próprio meio. Impedida de ser artista e mãe ao mesmo tempo. A cena que tentei acessar falava sobre violências contra mulheres. No entanto, o espaço acabou reproduzindo exatamente o que denunciava. Não adianta sustentar discursos politizados se, na prática, corpos reais continuam sendo deixados de fora.
Escrevo porque acredito que outra cena é possível. Acessibilidade também é atitude. É postura, acolhimento, escuta. Como gestora e produtora cultural, reconheço que é nossa responsabilidade informar bem o público: sinopse, recursos utilizados, estrutura do espaço. Entretanto, não nos cabe julgar quem pode ou não assistir.
Quando uma pessoa é impedida de entrar apenas por ser quem é, estamos falhando. Isso é autoritário. É segregador. E depois ainda nos perguntamos por que as pessoas “não vão mais ao teatro”. Se um espaço faz com que alguém se sinta rejeitado, como esperar que deseje voltar? O acesso à cultura passa pelos afetos. Sem isso, não há plateia que resista.
Que o incômodo desse relato se transforme em movimento. Enquanto mães com filhos forem barradas na porta dos espaços culturais, continuarão confinadas ao ambiente doméstico. E a tão falada acessibilidade seguirá sendo só discurso: vazio, burocrático, sem afeto e sem verdade.
*Mana Galvão é arte educadora, atriz, produtora cultural e mãe. É gestora do coletivo Artculada Produção Cultural, mestranda em artes e pós-graduanda em Gestão e Produção Cultural. Atua com infância, ações formativas e no incentivo à participação ativa na cena cultural.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.
Apoie a comunicação popular, contribua com a Redação Paula Oliveira Adissi do jornal Brasil de Fato PB
Dados Bancários
Banco do Brasil – Agência: 1619-5 / Conta: 61082-8
Nome: ASSOC DE COOP EDUC POP PB
Chave Pix – 40705206000131 (CNPJ)